quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Natal

Então é véspera de Natal e os ventos mudaram a partir da meia-noite trazendo um friozinho de estalar a espinha. O meio-oeste é um tapete branco mas não há sinal de neve por aqui. Há um sol dourado, um céu muito azul e um vento que derruba cadeiras no quintal. Na fronteira os mexicanos preparam seus tamales, deliciosas iguarias à base de milho, semelhante a uma pequena pamonha salgada, para celebrar a Noche Buena. Dona Amélia, minha diarista, me trouxe uma dúzia feitos por ela na mais autêntica tradição, com pimenta boa e brava. Os mais fincados no lado texano do Rio Grande celebram a data no dia 25. O trânsito durante a semana na divisa dos dois países esteve intenso, com a leva de mexicanos cruzando a ponte para festejar a data ao lado da família. Se existe recessão, a impressão que se tem é que ela acabou por aqui. Prateleiras estão vazias nas lojas e desde o final de novembro as filas estão enormes -- talvez porque os estabelecimentos tenham deixado de contratar trabalhadores temporários. Papai Noel fala espanhol e vende queijos com geléias no supermercado onde eu deixo para comprar tudo de última hora. Um presunto defumado para a noite de 24, um peru para o almoço do 25. O chutney de manga já está pronto desde a noite passada. A casa cheira a gengibre e especiarias. Gelatina colorida de sobremesa. Eu, a segunda geração, já incorporo as tradições da primeira. E crio novas, como um escondidinho de linguiça. Roberto Carlos não toca na TV, mas não sinto a menor falta. Os hinos natalinos ganham nova roupagem em forma de jazz, rock e R&B no Starbucks local, onde bebo meu Caramel Brulé Latte no mais puro estilo new yuppie. Me reúno com os amigos recentes para organizar uma grande festa para 80 pessoas na noite do 25 numa charmosa galeria de arte no centro da cidade. Escolhemos os panos para enfeitar o local. Seleciono as cores: verde, roxo e prata, uma intensidade de contrastes. Tento sentir o mesmo frio da barriga de anos atrás quando a data de hoje chegava, mas meu termômetro está em temperatura natural. Este ano não há árvore. A mudança iminente para a nova cidade pediu prudência nos gastos com decoração. Apenas uma meia vermelha e outra verde na janela da sala, aguardando um Papai Noel que que terá que entrar pelo buraco da coifa da cozinha na falta de uma chaminé. Será um natal de duas pessoas, um primeiro natal de casados, ao lado de uma gatinha e duas cachorrinhas. Um bebê e seria quase um presépio. Passo a semana tentando me lembrar porque é que celebramos o natal. O sentido religioso há muito tempo se foi, hoje é tudo comércio, mas também família. Ainda assim à noite vou ler em voz alta um trecho da Bíblia, voltar às origens, celebrar um hippie 2000 anos à frente do seu tempo que veio à Terra com uma mensagem de paz, só não ficou tão pop como Buda ou o Dalai Lama. Um pouco de incenso faria bem a este mundo. Assim como algumas doses cavalares de boa vontade. Mas celebremos. Feliz Noche Buena, Merry Christmas, Feliz Natal a todos.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Ritos fúnebres nos EUA e Brasil (e algumas notas sobre a vida, a morte e o que fica de tudo isto)

É apropriado falar de vida e morte num sentido figurativo quando o mundo está prestes a celebrar o nascimento de um dos seus maiores ícones religiosos e o fim de mais um ano é iminente. Contudo, atentemos ao sentido mais literal de vida e morte, da chegada e da partida deste mundo, do pó que viemos ao pó que voltamos, e aos acontecimentos entre estas duas etapas. Há uma semana estive no velório da mãe da chefe do meu marido. Eu não a conhecia, portanto foi mais fácil me distanciar da intensa carga emocional de assistir à perda de alguém querido. Nem por isto a sensação de fragilidade perante a vida, ou ainda, perante a morte, se fez menor. Observando o cerimonial fúnebre americano, que tem diferenças marcantes em relação ao brasileiro, me vi novamente refletindo sobre o maior de todos os mistérios, pois tudo o que sabemos a respeito da morte está carregado de superstições, crenças, suposições e dúvidas. A morte que, para alguns grupos aqui da fronteira, também é Santa Morte e venerada. Não existe ciência que prove nada, apenas que um dia tudo se vai. Cabe a cada um acreditar no que se sucederá, de acordo com suas convicções ou fé, e de que forma viverá até o momento do suspiro derradeiro.

Quando morei neste país pela primeira vez, aos 17 anos como intercambista, o meu "avô" americano faleceu (era o pai do meu "pai" americano). À primeira vista, tudo relacionado à maneira como a morte dele foi conduzida me chocou. Para mim havia um excesso de profissionalismo, frieza e distanciamento incompatíveis com um momento tão delicado, marcantemente diferente de como eu havia presenciado a morte no Brasil. O contraste com o primeiro velório que atendi na vida era gritante, na ocasião do falecimento do meu avô paterno em Juazeiro, Bahia, aos meus nove anos de idade, em meados dos anos 1980. Como a maioria dos cerimoniais fúnebres brasileiros, a velação do corpo ocorreu no mesmo dia do falecimento. Meu avô morreu de madrugada e à tarde já havia dezenas de pessoas ao redor do seu caixão. Naquele tempo e cidade, ainda havia a tradição de se usar preto em sinal de luto. As mulheres, sobretudo as mais idosas, também cobriam o rosto com um lenço de renda preto. Lembro-me da minha avó vestindo uma roupa preta. A maioria das pessoas trajava suas roupas do dia-a-dia, bastante informais. Mulheres rezavam o terço e entoavam cantilenas religiosas em vozes arrastadas. Alguns membros da família choravam desesperadamente sobre o caixão. Minha tia beijou o rosto do meu avô, e até então eu nunca poderia imaginar que era possível beijar um corpo sem vida. Do lado de fora da casa, um carro de som circulava pelas ruas da cidade anunciando seu falecimento. Lembro-me, sobretudo, de coisas extremamente gráficas e demasiadamente orgânicas que me chocaram intensamente, como alguém dizendo que o corpo deveria prosseguir ao cemitério antes que começasse a cheirar mal. Havia secreções descendo do corpo do meu avô: de hora em hora alguém tinha que trocar o algodão que lhe tapava as narinas e seus olhos se abriam. No cemitério, sua cova foi cavada na frente de todos os que ali estavam presentes. Um coveiro, uma pá e uma terra vermelha de onde saíram uma caveira, um fêmur e uma tíbia. Descobrimos ali que duas outras pessoas já haviam sido enterradas no mesmo local. Vi a terra ser jogada novamente por cima da cova. Era o meu primeiro contato com a morte e ela me pareceu extremamente crua e impiedosa. Nas duas semanas consecutivas eu tive pesadelos frequentes.

Fast foward no tempo e, infelizmente, em 2009 eu sofri a perda de um amigo querido, Marcelo, que se foi literalmente num piscar de olhos. Tinha minha idade, nenhuma enfermidade aparente e vivia uma vida não muito diferente da minha. Um baque enorme que até hoje não consegui processar. Uma partida sem explicação racional, pois não foi causada por acidente, crime, doença ou idade avançada. Num suspiro seu coração sucumbiu. É possível aceitar, mas é muito, muito difícil entender que aos 33 anos de idade era a hora de alguém tão cheio de planos, tão cheio de amigos e tão amado ir embora. Não há um dia em que eu não pense nele, na sua mulher ou nos seus amigos mais próximos que para sempre sentirão sua falta. Seu velório foi um dia após o seu falecimento, na capela de um cemitério da zona sul carioca. A quantidade de elementos gráficos que me chocaram na infância não foi tão notória, mas ainda assim estavam lá: um atendente do IML falando coisas muito explícitas sobre a liberação do corpo, um cemitério claustrofóbico, uma sala de velório encardida. Contudo, o choque maior desta vez foi mesmo o emocional.

Quando o meu "avô" americano se foi, o meu espanto foi causado pelo excesso de zelo. Tudo ficou aos cuidados de uma funerária, uma casa bonita com carpete, perfumada e limpa, onde um atendente sorridente nos conduzia à nossa capela. Aquele sorriso me causou grande desconforto, afinal para mim o momento de dor e perda não condizia em nada com tal expressão. Para mim, ele era um homem de negócios fazendo dinheiro, nada mais. O velório durou três dias, um deles sendo na igreja que grandpa frequentava. Grandpa estava extremamente branco, maquiado com base e pó. Os homens, incluindo os meninos, usavam terno e as mulheres trajavam seus vestidos mais formais em cores sóbrias. No cemitério, havia uma tenda branca ornamentada com flores, e à sua sombra cadeiras para a família. A cova já estava pronta e não havia sinais de terra. Pelo contrário, havia um tapete de grama sintética ao redor do buraco. As pessoas partiram antes de verem o túmulo ser fechado. O caixão era baixado à terra através de um mecanismo automatizado. Tudo muito higienizado, desinfetado, maquiado, polido. Durante aqueles três dias, carregamentos de comidas e bebidas chegaram à casa de grandma , enviado por parentes e amigos. Eram pilhas de pães, salgadinhos, donuts, doces, pastas, sucos, refrigerantes. Também havia sacos de pratos e talheres descartáveis. Não conseguia entender aquela fixação por comida. Após o enterro, houve um grande almoço na casa dela, numa recepção semelhante às que vemos nos filmes americanos e que até então sempre haviam me causado espanto pela dose visível de descontração.

No velório que atendi neste dezembro em Laredo, nada muito diferente do que presenciei há 16 anos: homens de terno e mulheres com roupas formais; uma funeral home, ou casa especializada em velórios, muito limpa, organizada e decorada como uma casa de família; um sorridente atendente de terno conduzindo todos à capela. Mas havia novos recursos. Nos alto-falantes, música clássica com ênfase nos noturnos de Chopin. Numa grande TV de plasma, logo acima do caixão, um vídeo mostrava diversas fotos da senhora que partiu. Uma vida de mais de 80 anos resumida em momentos alegres, como aniversários de família, o abraço dos netos, um dia na praia em preto e branco, uma bela moça de 18 anos num estupendo vestido de baile.

Hoje compreendo que estas tradições americanas que me impressionaram tanto quanto a visceralidade das tradições brasileiras na verdade servem de pára-choque para um momento tão pesaroso. Ainda que um velório de três dias possa parecer demasiadamente longo, possibilita à família e aos amigos ganharem um pouco mais de tempo para processarem a partida da pessoa querida. Mesmo racionalmente sabendo que a pessoa de fato já não está mais ali, são algumas horas a mais ao lado dela. O envio de comida para a casa da família mostra não apenas consideração, mas praticidade mesmo: ninguém tem cabeça para pensar em cozinhar, ou mesmo pedir comida, durante aqueles primeiros momentos de perda. E como bem sabemos praticidade é uma característica forte do americano. Planejamento de longo prazo também. Falar sobre os planos para a morte, por mais chocante que pareça, é encarado com bastante naturalidade. Se bem que não há prazo com a morte. Na cidadezinha de Iowa onde morei na década de 1990, as minhas host families já tinham tudo esquematizado através do seguro funeral para o caso da morte prematura de algum dos pais ou mães. Umas senhoras que estavam no enterro diziam que já tinham inclusive escolhido seu próprio caixão. Eu mal havia começado a namorar o meu marido e ele já perguntava onde seríamos enterrados, uma vez que sou brasileira e ele é americano. Ele quer que sejamos enterrados lado a lado.

Recentemente aqui na fronteira tomei conhecimento da Santa Morte, uma entidade venerada no México e que já adentrou as populações imigrantes nos Estados Unidos. Ainda estou devendo um post exclusivo sobre o tema, pois é fascinante. Mas em resumo ela é venerada, entre outros aspectos, por representar não o fim, mas o começo de uma nova vida. Para haver vida, é necessário haver a morte, e de fato não há verdade maior. Sua longa manta representa a nossa carne e as riquezas materiais, que não duram e podem ser retiradas de nós. Numa das mãos carrega uma foice, símbolo da colheita, representando esperança e prosperidade. Na outra traz um globo, simbolizando a imensidão do seu domínio e o túmulo para onde todos retornaremos. Uma coruja sempre lhe acompanha, representando sabedoria e lhe servindo de luz na escuridão. Muitas vezes ela também carrega uma ampulheta, que indica o tempo da nossa vida na Terra, assim como paciência. Só consigo encontrar bom senso nestes símbolos.

Sabemos que um dia nos vamos, que as pessoas que amamos também partirão --apenas fisicamente, já que elas sempre existirão enquanto forem lembradas. Exige-se força hercúlea arcar com a perda de alguém que se foi antes de nós. Mas entender ou aceitar a verdade de que "se morre a partir do momento em que se nasce", como alguém já proferiu, e que "a morte é a única certeza que de fato temos" pode nos ensinar a vivermos de forma mais sábia e plena. Não sou de ficar pensando na minha morte, mas claro que já cogitei ter as cinzas jogadas no Rio São Francisco a partir da ponte que liga Petrolina-PE a Juazeiro-BA. Honestamente, quando a minha vez chegar, que seja onde der menos trabalho para quem ficar responsável pela tarefa. Sei também que provavelmente ninguém vai acreditar ou fazer isto acontecer, mas eu preferia, inclusive, que o formato fosse de festa. Uns sambas de Chico Buarque, umas caipirinhas e umas comidas gostosas. E um batom bem bonito nos meus lábios, por favor. Sei que soa mórbido, mas entre tantas lembranças acabamos também recordando do rosto da pessoa querida no seu leito final. Pelo menos lembrem-se de mim com rímel, gloss e um pouco de sombra dourada. Por alguma razão, desde meus tempos imemoriais, sempre tive a sensação de que a vida é mesmo muito frágil e pode acabar a qualquer minuto. Por isto uma vontade louca de tudo viver, de a todos conhecer, de viajar, de não postergar tanto os planos, de sorrir mais e, mais recentemente, sobretudo após a partida do meu amigo, de deixar claro o quanto amo e admiro as pessoas que amo e admiro. Ainda não me sinto pronta para partir -- pelo contrário, tenho planos para décadas e mais décadas por vir -- mas se a minha hora chegar, posso dizer que vivi uma vida plena e feliz. Cada fase intensamente vivida com todas as suas conquistas, dúvidas, dores, alegrias, encontros e desencontros. Algumas fotos de carnavais purpurinados e outras de noites em claro chorando as pitangas. O saldo, porém, é bem positivo.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Considerações sobre o trabalho e uma vida ordinária: parte 2

Neste ato solitário que é escrever, mesmo um blog que considero tão inofensivo quanto o meu, com pensamentos de alguém que não é especialista em nada e generalista em quase tudo, me dou conta do quanto é saudável poder trocar idéias a respeito dos assuntos que aqui publico. Na solidão da escrita rápida de crônicas corriqueiras é muito comum faltar um checklist aprofundado dos temas em destaque. Ao reler o que escrevi dias após a publicação, tenho vontade de reescrever algumas mal traçadas linhas. A auto-crítica faz-se constantemente necessária. Recentemente uma amiga deixou um comentário no post em que eu fazia algumas considerações sobre o trabalho e uma vida ordinária. Ao reler o texto, me dei conta da quantidade de outros pensamentos relevantes ao tema que deixei de expressar. Este post, portanto, é um addendum aos pensamentos aqui escritos em 02 de dezembro.

Ficou um hiato no meu texto sobre a opção de ser mãe e viver uma vida dedicada ao lar. Algo que considero totalmente nobre se, tendo a mulher a opção de trabalhar dentro ou fora de casa, for feito de maneira consciente, por livre e espontânea vontade. Nada como as liberdades. Cuidar da educação de uma pessoa, fazê-la crescer saudável e plena é um dos atos mais nobres que conheço. E dá um trabalho da porra! Tenho várias amigas que fizeram esta opção. Um ponto importante: todas americanas ou brasileiras vivendo nos Estados Unidos, onde as facilidades econômicas propiciam esta escolha. O custo de colocar o filho numa creche ou contratar uma babá é tão alto que muitos casais optam para que um dos cônjugues fique em casa na função integral de mãe ou pai. Obviamente que em 99,9% dos casos quem assume o papel é a mulher. Com a recessão, porém, algumas amigas ou voltaram ao batente ou estão trabalhando meio-período.

Acredito veemente, porém, que ainda que se escolha ficar em casa, é importante para a mulher dedicar um pouco a mais do seu tempo a outras atividades que não sejam apenas a criação dos filhos ou a organização do lar, pois a vida é bem mais plural do que isto. Faça um curso de fotografia, aprenda a desenhar, vá a academia, comece um clube do livro. Produza, insira-se num meio criativo, esteja sempre a expandir seus horizontes, pois trará imensos benefícios para si mesma e consequentemente para o resto da família. O que acontecerá no dia em que os filhos forem embora? Fazendo outras atividades focadas no seu bem-estar, exercita-se, entre tantos itens de uma vasta lista, a independência, o desapego e o estar em contato consigo versus anular-se por completo dentro de uma relação ou no papel de mãe, que é, em grande parte, o papel de servir.

Entre os meus planos de vida está o de ser mãe, ainda sem data definida. Mas aos 33 anos já não se dá mais para esperar tanto assim, portanto algumas reflexões começam a surgir com mais frequência, entre elas a de se optarei por ficar em casa durante uma temporada cuidando dos filhos ou se tentarei me dividir entre o trabalhar fora de casa e o trabalhar dentro de casa. Como bem colocou minha amiga Genoveva, "cá entre nós, à mulher moderna restam estas duas opções!" Por mais que os homens que minhas amigas elegeram para se casar sejam, na sua maioria, bem mais flexíveis que a geração dos seus pais, estou por conhecer um casal realmente moderno no qual o trabalho doméstico seja dividido meio a meio entre homem e mulher. Talvez exista lá no reino da Dinamarca, onde tudo é perfeito, mas no Brasil ou aqui nos Estados Unidos eu ainda não vi. Em geral o homem simplesmente se abstrai de tomar a iniciativa para certas funções. Meu marido é um bom exemplo: é bastante compreensivo no que toca as responsabilidades do lar, ajudando sempre que peço, porém se eu não pedir, assume-se que eu, por não estar trabalhando fora, tenho a responsabilidade de fazê-lo. Ou então faz pela metade: leva o lixo para fora, mas não coloca um novo saco plástico na lixeira. Como se a lixeira fosse robótica e automaticamente acionasse o refil. Eu, buscando sempre a modernidade, já devo estar na trigésima-quarta repetição de "amor, por favor, não se esqueça de colocar um novo saco plástico." Sabe aquela história de entrar por um ouvido e sair pelo outro? E apois. Mas existe também o caso da mulher tomar para ela a maior parte das responsabilidades. Um dia uma amiga, exausta física e emocionalmente, me confidenciou que o marido nunca havia trocado a fralda dos filhos. Eu perguntei se ela já havia deixado que ele o fizesse. Ela se deu conta que ele tentou uma vez, mas por fazê-lo tão mal ela tomou para si a totalidade da função. A verdade é que nós, mulheres, com nosso perfeccionismo e alto grau de exigência, podemos ser tão controladoras a ponto de dificultarmos nossa própria vida sem nos darmos conta.

Trabalhar no lar dá um trabalho danado e é uma ocupação que nunca acaba -- sempre há uma louça para lavar, uma roupa para passar, uma lâmpada para trocar, um banheiro para limpar. Não há remuneração e muito menos reconhecimento, além de ser um trabalho repetitivo e criativamente limitado. Ainda que seja possível ter uma empregada, caberá quase sempre à mulher a função de organizar a casa: efetuar o pagamento da diarista, fazer a lista do supermercado, decidir qual será a ceia de natal, lembrar o marido do aniversário do pai dele, mudar as cortinas da sala, chamar a empresa que limpa carpetes, organizar o batizado da filha, pregar os botões do casaco do filho, marcar consultas médicas para família. Novamente, pelas razões que mencionei acima: abstração do cônjugue ou pelo fato da mulher tomar como sendo dela estas responsabilidades. Alguém me diga se há outras razões. Tendo-se, pois, opções de escolha entre trabalhar dentro ou fora-dentro de casa, acredito que eu opte pela segunda. Lembro muito bem das minhas colegas de trabalho no Rio de Janeiro que enchiam os olhos de lágrimas ao falar que já era a terceira noite consecutiva que não conseguiam ver o filho porque, ao chegarem em casa, ele já estava dormindo. Espero não ter que passar por esta constante sensação de frustração e culpa, mas pelo que pude observar é inerente ao ser mulher-mãe-profissional. Mas no fim das contas, dá para balancear as multi-funções e conviver com as nóias sem apelar para Prozac ou meia garrafa de vinho por dia. Espero, quem sabe, conseguir um trabalho com horário flexível ou home-office. Ser mãe e cuidar do lar é um trabalho nobre, mas o trabalho fora de casa também e honrável e enobrece. Acredito que quando tanto o marido quanto a esposa ganham seu próprio dinheiro, a relação do casal se torna mais equilibrada. Porque convenhamos, por mais maravilhoso que seja o parceiro, há uma relação de poder advinda de quem está trazendo o pão pra dentro de casa. Primeiro, porque ganha-se mais força na barganha da delegação das atividades domésticas. Segundo porque ninguém merece ter que ouvir o marido dizer que está sem poder comprar camisas novas porque, em vez disto, o dinheiro foi para a depilação com cera quente da esposa. Lógico que, neste caso, a mulher tem o total direito de chantagear o marido dizendo que passará a adotar um penteado vintage no seu pólo sul.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Estereótipos e caricaturas de um certo Brazil


Sábado à tarde, irritada com o fato de o Presidente Barack Obama ter recebido na última quinta-feira o Nobel da Paz -- considerando que apenas uma semana antes ele havia anunciado o envio de mais 30.000 tropas para o Afeganistão, numa campanha em que até mesmo alguns de seus generais prevêem o que se tornará uma guerra ainda mais caótica que a do Iraque -- eu zapeava canais de televisão até encontrar algo totalmente leve, divertido e à prova de irritação. Parei no canal Bravo, onde mais um episódio de America's Next Top Model se desenrolava. Este reality show, no qual meninas esqueléticas tentam ser a próxima Gisele Bündchen, é uma daquelas frivolidades que rende boas gargalhadas sem exigir fosfato algum do cérebro. Como toda mulher, carrego a mulherzinha interior que sempre teve um desejo oculto de ser modelete. Às vezes nem tão oculto assim. Tanto que --- e aqui revelo aspectos do meu negro passado -- aos 11 anos ganhei o concurso de Rainha de Milho do colégio e aos 12 anos conquistei o título de Miss Jardim Paulo Afonso, o nome do meu bairro. Parei por aí. Alguém me disse que é a beleza interior que conta, mas depois de crescer e ficar um pouco mais cínica acho que deve ter sido alguém bem feio. Mas voltando ao programa: sábado não era o meu dia, pois não apenas aquele foi o episódio mais irritante que poderia ser veiculado, como também uma força maior me impedia de desligar o vídeo. Eu precisava assistir até o final aquele conteúdo medonho que trazia à tela mais uma caricatura de um estereotipado país chamado Brazil, só para ter certeza de que a sua imagem no exterior continua tão igual à que sempre foi.


O tom de "originalidade" foi dado no momento em que as modelos souberam onde se passaria a próxima prova: uma chuva de papéis verde-amarela, samba como fundo musical e jurados dançando desengonçadamente com caribenhas maracas coloridas nas mãos. Afinal, tudo ao sul do Texas é praticamente a mesma coisa para a maior parte do (ignorante) público nestas bandas do norte. Ou seriam as maracas representativas de Carmem Miranda, o estereótipo-mor da brasileira que desde a década de 1940 permeia o imaginário norte-americano? Meu marido, às gargalhadas com minha fúria no olhar, trazia bananas e maçãs da cozinha e as colocava na minha cabeça. O que mais dói é que aquele programa não foi preparado por pessoas ignorantes. Refaço: ignorância é algo relativo. Tenho certeza que quem escreveu, dirigiu e/ou produziu o show estudou, viajou e saiu dos Estados Unidos pelo menos uma vez na vida. Mas é mesmo muito mais fácil e cômodo nivelar por baixo.

O episódio se passava em São Paulo, onde as modelos enfrentavam diversos desafios que culminariam na eliminação de uma delas. A recepção das moçoilas foi no Jardim Botânico, onde -- e como não? -- um grupo de mulatas em roupas minúsculas e estandartes na cabeça rebolavam o burugundum. Na primeira prova, as modelos tinham que comprar flores para levar para ninguém menos que a Girl from Ipanema. Pelo menos nesta parte eu vibrei -- não pela Garota de Ipanema, mas por ver minha amiga Verônica fazendo o papel de florista. Foi bom ter assim, tão dentro de casa e a milhares de quilômetros um rosto familiar e querido. Mas eis que a própria Garota de Ipanema, Helô Pinheiro, em carne e osso (e total falta de bom senso) desce as escadarias requebrando as cadeiras e remexendo os bracinhos bem ao estilo Carmem. Não satisfeita, ainda ensina às participantes que elas precisam saber se mover "com graça", pois foi por esta razão que se tornou musa daquela música. A esta altura, eu já estava com a cara totalmente enterrada na almofada, morrendo uma trágica morte de VPP (Vergonha Pela Pessoa, genial termo que aprendi durante minha estada carioca).

Helô Pinheiro aparece no vídeo abaixo a partir da marca de 1 minuto.


Como todo bolo que se preze tem uma cereja no topo, o programa ainda adicionou esta mega cereja de desafio: as garotas iam a uma favela para uma sessão de fotos fantasiadas de quem? De quem? Ninguém menos que Carmem Miranda! Façamos justiça: foi interessante o programa trazer a favela tão para dentro do mainstream. Neste ponto, ajuda a quebrar o preconceito de violência sempre associado a estas comunidades. Mas havia algo de bizarro e cruel naquele gritante contraste de pobreza com o luxo de belas fotos em modelos gringas e (quase todas) muito brancas. Era a miséria sendo tomada como exótica e apresentada a um público que não conhece nada ou praticamente nada daquele universo.



A falta de aprofundamento deste olhar estrangeiro sobre o país registrava (novamente) em foto e vídeo um Brasil simplificado, paradisíaco, pobre, selvagem, tropical e sensual. Um olhar estrangeiro formador de opinião que repassava para mais uma geração uma versão lugar-comum de Brasil, batida por séculos desde os tempos de Hans Staden. Não que o estereótipo não traga traços da realidade, mas por fazê-lo de maneira tão simplista e superficial acaba por se tornar nocivo, carregado de preconceitos, reduzindo a realidade a um olhar repetitivo e carregado de clichés. O próprio Brasil tem em parte culpa por este olhar reducionista, pois durante décadas vendeu em campanhas turísticas no exterior um Brasil de mulatas, samba, futebol e floresta Amazônica. Até mesmo recentemente a própria campanha pelas Olimpíadas no Rio esteve carregada com estes mesmos símbolos tão profundamente cimentados no imaginário universal. Pior ainda é quando vejo ou escuto que brasileiros continuam a propagar os mesmos velhos conceitos. Outro dia num restaurante mexicano o dono, quando soube minha nacionalidade, veio me dizer que conheceu uma brasileira em San Antonio, Texas, que vendia biquínis "muy, muy pequeños" e que de acordo com ela era o que as compatriotas usavam nas nossas belas e tropicais praias. Há mentira nisto? Não. Mas este tipo de situação só enfatiza o aspecto "Brasil-terra-de-mulher-sensual-diga-se-de-passagem-puta" que permeia o imaginário da gringolândia. Está na hora desta gente bronzeada dar novos exemplos.

Conforme dissertação acadêmica do jornalista Ivan Paganotti, "os estereótipos são cruciais para a assimilação e reprodução de conceitos complexos, e tem um efeito positivo (...): oferecem um denominador comum a partir dos quais ( as pessoas) podem construir suas narrativas mais aprofundadas. Mas a armadilha simplificadora dos estereótipos persiste: quando não mais condizem com a situação que representam, eles precisam ser discutidos, transformados e, quando necessário, negados. (...) É cômodo basear a cobertura (jornalística) em pressupostos, alimentando as pré-concepções com dados, histórias e interpretações que reafirmam o que o público já sabe sobre a realidade ou, no pior cenário, repetir conceitos ideologicamente enviesados que simplesmente não condizem com a verdade." Porque sabemos (ou não?), que o Brasil é um país diverso e complexo, muitas vezes incompreensível até mesmo para nós brasileiros, que vai muito além destas representações batidas. Um país que tem pobreza sim, mas também progresso. Um país que produz e exporta aviões, possuidor de belas cidades, caatinga e serrado -- e não apenas praia e floresta amazônica--, e dono de uma produção cultural de alto nível em cinema, teatro, literatura, artes plásticas e dança (muito além do puro samba e rebolado). Um país empreendedor, com espaço para erudição, ciência e tecnologia. Para ser levado a sério, o Brasil precisa vender estes conceitos. Senão, corre o risco de ser eternamente um enlatado Brazil com prazo de validade vencido.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Dia da Carreira na high school (e algumas considerações sobre o trabalho e uma vida ordinária)

Na semana passada fui convidada para contar as delícias de uma carreira em marketing para cinco turmas de formandos no Dia da Carreira da United High School em Laredo. O convite chegou como um suco concentrado de açaí com gengibre na veia que trafega diretamente ao meu ego, levantando meu ânimo de dona de casa ao me fazer voltar à minha personagem eu-profissional. Já estava até esquecendo a temperatura daquele friozinho na barriga antes de uma apresentação -- e olha que já fiz tantas, quase sempre de sucesso, mas também já fiquei à beira de levar tomates da platéia. Naquela manhã fria e molhada de um outono que chegou tarde, diante de estudantes adolescentes que ainda têm a vida inteira pela frente, eu refleti em silêncio sobre minhas escolhas profissionais, meu atual momento de desemprego enquanto aguardo uma licença para trabalhar e o que é que eu farei com o resto da vida inteira que também tenho pela frente.

O convite partiu de uma amiga brasileira que é professora desta escola pública, situada num prédio recém-construído que custou US$ 57 milhões. Só a estátua de um longhorn, o boizão de mega-chifres símbolo do Texas e da escola, custou US$ 110 mil. Com uma estrutura física de fazer cair o queixo -- salas altamente equipadas com computadores e audiovisual, biblioteca gigantesca repleta de desktops, academia física de primeira linha, aulas de culinária com cozinha industrial, entre outras amenidades -- era certamente melhor do que a maioria das universidades públicas que já visitei no Brasil. Certamente melhor do que a UFPE quando lá estudei em 1996, onde mal havia máquinas fotográficas para as aulas de fotografia. Mas como em terra de cego quem tem um olho é cego também, minha amiga professora da United High School conta que a hipocrisa local não permite, por exemplo, que os estudantes tenham aulas de educação sexual -- a pedido dos pais, a propósito. Em pelo menos uma das suas turmas há três garotas de menos de 17 anos que já têm filhos. Os professores são instruídos a não tocarem no assunto. Aulas sobre drogas são permitidas, inclusive há um senhor autorizado a andar com uma maleta cheia de exemplares das drogas mais consumidas instruíndo os estudantes a manterem-se longe delas. Vá entender.

Como grande perfeccionista que sou, preparei apresentação de PowerPoint, busquei exemplos de produtos e ações com os quais os estudantes se identificassem e treinei minha fala por diversas vezes, mentalizando uma sala repleta de alunos interessadíssimos no que eu tinha a lhes dizer. Meu marido tirou o maior sarro de mim, me chamando de teacher's pet, ou "bichinho de estimação do professor", apelido muito comum por aqui para quem é estudante certinho e faz amizade com professores. Reconheço, sou bem geek mesmo, vulgo CDF, e até hoje mantenho contato com alguns professores da universidade onde me formei.

Havia vários profissionais naquela manhã fazendo visitas de sala em sala: advogados, policiais, bombeiros, pastores de igreja, médicos e até onde sei, apenas eu de marketing. Também apenas eu utilizando PowerPoint, mas e daí? Tenho certeza que me diverti mais do que qualquer outro palestrante convidado e os estudantes mostraram-se super interessados, fazendo várias perguntas. Exceto por uma aluna que queria cursar faculdade de marketing, nenhum estudante tinha noção da disciplina. Gostei de me ver exercendo aquele papel professoral, passando adiante um pouco do conhecimento que adquiri ao longo de 10 anos de carreira. Me fez até repensar que tipo de emprego vou procurar quando for chegada a hora. Se eu pelo menos consegui motivar um aluno que seja -- nem falo necessariamente para a profissão de marketing, mas para ingressar na universidade, já que o índice de alunos que completam o high school em Laredo é de apenas 50% -- eu serei eternamente grata por ter tido aquela chance de conversar com as turmas. É calmante e acalorada a sensação de ajudar alguém que precisa de orientação. Um garoto perguntou se eu gostava do que faço. Respondi que sim e tentei ser o mais convincente possível (acho que consegui), sem o cinismo de quem já viu muito ao longo dos anos, exaltando o dinamismo de uma área que está sempre se modificando para melhor atender às necessidades e desejos dos consumidores que todos somos. Mas aquela simples pergunta me trouxe algumas reflexões.

Aprendemos que o trabalho enaltece o ser humano. Até aí, verdade. Os aprendizados da jornada profissional de fato contribuem para o nosso crescimento pessoal. Precisamos produzir, criar, e o trabalho nos traz esta possibilidade. Nasci num meio proletário-classe-média, ainda que um proletariado intelectual que usava o cérebro para trazer para casa o arroz e feijão de cada dia. Entre os valores aprendidos na infância estavam o de que o trabalho é honrado e que deve-se trabalhar para ganhar o seu. Eu e meus irmãos fomos ensinadas a termos ambições e a sermos financeiramente (além de emocionalmente) independentes. Eu e minha irmã fomos doutrinadas especificamente a jamais dependermos de homem algum. Valores que certamente passarei adiante para meus descendentes. Ao mesmo tempo, cresci com aquele desejo nutrido por 99,99% dos humanóides de quem sabe um dia eu ganharia tanto dinheiro a ponto de não precisar mais trabalhar, ou de apenas fazer projetos quando me desse vontade, sem que minha existência física neste mundo dependesse deles. Porque convenhamos, para a maioria de nós que trabalha para sobreviver, por mais que se goste da profissão e do trabalho que se escolhe a verdade é que no fundo é trabalho. Trabalho oposto a lazer e descanso. Trabalho para onde temos que nos deslocar de segunda a sexta, enfrentando ônibus, metrô e trânsito e passando mais tempo com seus colegas de trabalho do que com sua família e amigos. Como a maioria das pessoas do meu círculo de amizades, escolhi até quatro meses atrás labutar pegando no batente em horário comercial, mas quase sempre passando da hora sem ganhar hora-extra por isto. Ironias a parte, eu deveria inclusive ficar feliz por ter ganhado uma promoção para gerente e, portanto, deveria fazer hora extra quando possível sem ganhar um centavo a mais por isto, pois era "cargo de confiança". Doei corpo e alma para trabalhar em empresas onde, com o salário que eu recebia -- ainda que considerado um bom salário para padrões brasileiros -- não teria condições de ser compradora dos produtos que eu mesmo vendia. No passado isto já rendeu revoluções, mas hoje calamos a boca devivo às outras amenidades que conseguimos com o fruto das nossas noites mal-dormidas e das poucas horas diárias dedicadas ao lazer (simplesmente pela total impossibilidade de se ter tempo livre com frequência, uma vez que da hora que se levanta pela manhã em função do trabalho até o momento de se chegar em casa à noite já se passaram entre 13 e 14 horas; reserva-se duas ou três horas para descomprimir e torna-se necessário encostar a cabeça no travesseiro para começar tudo novamente na manhã seguinte). Claro, há um batalhão de pessoas na pior e eu aqui reclamando do meu risoto de camarão. Apenas um porém: isto não chega a ser uma reclamação, apenas uma constatação do óbvio, das coisas como elas são.

Agora me encontro num momento particular em que estou sem emprego porque ainda não tenho permissão para trabalhar neste país. E dependendo do meu marido para o frango-com-macarrão de todos os dias. Há cinco meses não trabalho fora de casa: ganhei o nobre título de rainha do lar. Virei pilota de fogão, algo que também pode ser extremamente cansativo e enfadonho, mas que neste momento não chega a me incomodar. Divido o meu dia entre a cozinha, o computador, as aulas de violão, a academia, a cuidar dos animais de estimação e o supermercado. Diariamente alguém dos Estados Unidos ou do Brasil me pergunta quando voltarei a pegar no batente. Ainda que minha permissão de trabalho só saia daqui a três ou seis meses, semanalmente meu marido me pergunta se já andei pesquisando empresas em Houston, para onde nos mudaremos em breve. E cada vez mais percebo novamente o óbvio: que somos julgados pelo trabalho que temos ou que não temos, e que há uma pressão enorme em ter que se trabalhar. Ou em ter que produzir algo, qualquer coisa que não seja tão ordinário como esta vida doméstica que atualmente vivo. Como já sabemos, os playboys de antigamente, que passavam a vida entre festas e iates sem jamais bater ponto, já não têm o mesmo status dos playboys de agora que trabalham pela ambição de fazer mais dinheiro, por poder, ou quem sabe até por prazer. A tônica da modernidade dita que se você não precisa trabalhar, então tem que ser patrão. Agora, uma heresia: não sou playgirl e a verdade -- e preciso gritar -- é que não estou sentindo a menor falta do trabalho. Daquele trabalho que me trouxe tanto e me fez chegar até onde estou hoje (olhando por um lado bem simplista, fui eu quem comprei minha passagem e fiz toda a minha mudança para os Estados Unidos; tudo com os reais contados do meu suor). Nem estou com pressa de produzir nada além deste blog, nem de inventar outros projetos, outros hobbies, enfim. Tem horas que a gente tem que ser ordinário mesmo, até porque no meu caso sei que isto não será para sempre. Tem horas que a gente tem que apertar o botão de pause pessoal para poder digerir tudo o que não tivemos tempo de fazê-lo porque não tínhamos tempo.

Não ganhei na loteria nem me casei com um homem rico. O dinheiro está contado e para mantermos o padrão que tínhamos antes do casamento eu terei que voltar às origens muito em breve. O que farei com gosto quando a hora chegar, dando o melhor de mim para a empresa que me contratar. Já tenho um plano traçado, e o desejo de ser patrão também está lá, me servindo de cenourinha nesta corrida chamada vida. Mas tudo dentro do seu tempo.

domingo, 29 de novembro de 2009

As viradas do tempo

Há um tanto de ironia nestas viradas de tempo. Vai-se embora o calor de um verão impiedoso na recepção que me derretia por dentro enquanto eu tentava compreender tantas mudanças numa só vida. Chega, por fim, uma brisa fria para a cobrir a noite destas planícies texanas, mas continuo a botar lenha no meu coração. O inverno iminente igualmente traz previsões acaloradas. Em dois meses ou menos deixarei Laredo rumo à cosmopolitanidade de Houston e às milhares de urbanas oportunidades. São tantos processos: vender a casa, organizar bazar para se livrar dos descartáveis que o marido acumulou com o tempo, procurar uma nova casa na cidade que não se conhece e entender as pequenas grandes contradições inerentes à vida. Como a de se despedir tentando se enraigar. O adeus traz sempre consigo a possibilidade do nunca mais, portanto é preciso viver para se lembrar daquilo que nunca mais será. É preciso conhecer as pessoas que você nunca mais verá, é preciso rir com elas, dançar com elas, brindar com elas, comungar das suas alegrias e oferecer ambos os ombros para seus lamentos. As pessoas que chegam até você quando você não as procura. Ao menos conscientemente. No querer-ir há sempre um querer-ficar, mesmo quando a escolha é clara. Porque ali fomos nós um dia e agora somos outra coisa em movimento. Olho para frente. Daqui a dois meses ou menos tudo muda. Nova casa, nova cidade, novos amigos, novo emprego. Tudo ainda a se procurar, não há nada certo além da certeza de que estarei lá. Tudo de novo outra vez. Aprende-se a dominar a saudade. Escolhi viver todas as estações. Dormirei pensando em primaveras.

sábado, 21 de novembro de 2009

Mulheres unidas jamais serão vencidas

Para me tirar do tédio da vasta agenda social deste momento doméstico da minha vida (preparar o almoço diariamente, ir à aula de violão onde descubro que tenho talento zero, brincar com a gatinha que apareceu no jardim há cerca de três semanas, lavar a louça que não se cansa de sujar, trocar a comida das cadelinhas, ir a hidroginástica, retocar a pintura do cabelo em casa e fazer compras no supermercado), esta semana uma amiga advogada me convidou para ir a um evento da Laredo Women's Bar Association, ou Associação das Advogadas de Laredo (não, não é associação das mulheres dos bares, mas se fosse eu iria con mucho gusto). Apesar de eu não ser advogada, e mesmo temendo que fosse ser algo extremamente enfadonho, não recusei nem que me oferecessem um lavada completa de louça do almoço do dia seguinte. Ainda por cima, o evento era na Galeria 201, um dos meus lugares preferidos de Laredo, e tinha degustação de vinhos (ver post prévio sobre a Galeria aqui neste blog). Juntou a fome com a inanição, portanto não tinha como eu negar minha presença. Ainda bem que eu fui, pois a noite acabou se transformando num palco para uma reflexão sobre a força da união feminina.

A razão principal do evento era a arrecadação de fundos para uma organização que cuida de crianças em espera de adoção porque a justiça as afastou de seus pais devido a abuso e/ou negligência destes. Americanos adoram eventos para arrecadar dinheiro -- e sabem fazer isto muito bem, por sinal. Por valores que variavam de US$ 10-30, comprava-se uma rifa para o sorteio de até quatro lindas bolsas -- quase todas beeeem peruais, mas lindas -- da renomada designer americana Melie Blanco, que por sinal é irmã de uma das advogadas. Prêmio totalmente condizente com o público-alvo. Óbvio que apesar de eu ser uma semi-perua (aquela que adora um acessório e maquiagem, mas sabe ser discreta no uso), sucumbi e comprei minha rifa.

Enquanto as doações iam sendo arrecadadas, enchíamos pratinhos com aperitivos e copinhos plásticos com vinhos diversos -- o que aconteceu com vidro, oh my God? Uma elegante convidada enóloga, responsável pelo departamento de vinhos dos Supermercados HEB, nos dava uma pequena aula sobre como degustar a bebida além de dicas importantes: "se você for convidada para um jantar e não souber qual será a comida servida, leve um Pinot Noir." A platéia de aproximadamente 40 mulheres foi bastante participativa. Quase todas estávamos sentadas à uma grande mesa no meio do salão principal da pequena galeria de paredes centenárias e quadros coloridos de artistas locais. Um cantor com seu infalível órgão cantava músicas derramadamente românticas em espanhol. A advogada que estava ao meu lado me confidenciou o quanto amava este tipo de música. As mulheres conversavam, riam e interagiam. Várias vieram se apresentar para mim. "Oi, meu nome é Fulana de Tal, sou advogada particular/promotora federal/advogada criminalista". No que eu respondia: "oi, sou Desbra Vando, convidada de Fabiola Flores". Fabi, então, adicionava mais um capítulo à minha apresentação: "ela é a esposa de WB". E ali estava eu, sendo não mais eu, mas a esposa de alguém, em meio a um grupo de profissionais. Vez por outra uma se aproximava e fazia algum comentário: "você é brasileira, certo? uau, o que acha de Laredo?", ou "gosto muito do seu marido, diga 'oi' para ele por mim". O que mais que chamou atenção foi que naquele evento, na minha função de convidada de alguém, apresentada como a esposa de alguém mais, eu não me senti em nenhum momento como peixe fora d'água.

Havia um sentimento de união naquele grupo. Mulheres seguras de si, mulheres elegantes sem afetação, mulheres interessadas umas nas outras. Mulheres que sabiam ser profissionais e sabiam ser mulheres também, em todo o sentido mais feminino da palavra: comentavam como a roupa da outra estava bonita, como a torta de banana com doce de leite estava saborosa, suspiravam ao dizer o quanto gostavam da música romântica, aplaudiam com vibração quando a diretoria da Associação foi apresentada. Mulheres que se emocionavam ao colocar suas vidas pessoais em pauta para vender a idéia de ajudar a associação que cuida de crianças, como a juíza que perdeu uma gravidez há alguns meses e que pegou o microfone para contar que está em processo de adotar um filho. Mulheres que, como mulheres, também adoram dar umas alfinetadas nos homens: três delas comentavam como o juiz Fulano de Tal e o promotor Sicrano de Val não liam os novos códigos de leis e estavam totalmente defasados nas novas legislações. Todas diziam que em geral as mulheres rapidamente aprendiam as novas leis, enquanto que os homens eram mais passivos. Mulheres seguras de si e de suas convicções. Mulheres que sabem delegar e dividir os louros do sucesso com o grupo do qual fazem parte. Mulheres que não precisam provar nada para ninguém, apenas para si mesmas. Aquelas mulheres de quarta-feira à noite em Laredo pareciam felizes por estar ali, em poder trabalhar e interagir umas com as outras.

Foi inevitával não relacionar aquele evento com o contato retomado com uma amiga de colégio primário, que continua tão bonita quanto como eu me lembro dela na primeira série. Ela me escreveu coisas lindas e me falou que gostava de poesia. Eu a incentivei a criar o seu blog de poemas, pois percebi na maneira que ela me escrevia em prosa que era talentosa. Ela me respondeu que a princípio ficou com receio de criar um blog e eu achar que ela estava me invejando, já que eu tenho o meu, mas logo viu que isto era tolice, coisa de quem mora em cidade pequena e já é "gato escaldado" em inveja de interior. Óbvio que eu achei que não havia nada de invejoso nisto, e que bom que ela também, pois logo em seguida criou seu blog. Juntando este acontecimento com o evento em Laredo, pensei: somos mulheres e temos que nos unir. Sempre. Temos que nos ajudar, nos incentivar, nos motivar, sermos modelos umas para as outras. Temos que saber ser mulheres, sendo mulheres -- que falam, que riem, que se emocionam e que sabem ser firmes também. Parafraseando Che, endurecer mas sem perder a doçura. E se a inveja surgir, porque inveja é coisa de humano -- eu sinto, tu sentes, ela sente, ele sente, nós sentimos -- que esta inveja seja direcionada para superar nossas limitações, nossas tristezas e mágoas. Se eu não tivesse sentido inveja em alguns momentos da minha vida, não teria andado para frente. Gerações passadas já conseguiram tantos avanços na luta da emancipação feminina; gerações presentes seguem lutando; mas este ainda é um mundo masculino na sua maior parte, mesmo aqui na superpotência americana. O comportamento feminino é julgado tendo como base o comportamento masculino, sobretudo no âmbito profissional: em público não podemos chorar, não podemos falar alto, não podemos abrir o coração, não podemos imitar algo que nos agrada. São gestos e atitudes vistos como fracos, pois sabemos que historicamente estão associados ao comportamento feminino. Mas o bom é que a Terra gira todos os dias e nós mudamos também. Que bom que as mulheres vão se fazendo cada vez mais vozes fortes no mundo, usando o que lhes é mais feminino a seu favor. Portanto mulheres, sejam amigas, inspirem e deixem-se inspirar.

Aquela noite eu não ganhei uma bolsa bonita na rifa, mas ganhei uma lufada de ar fresco cor-de-rosa-choque.

domingo, 15 de novembro de 2009

La vida guacamole

Fez um domingo quente. Um domingo quente de guacamole. Domingo verde-abacate pra recomeçar novinha e esquecer que em uma semana a gente pode amadurecer até passar do ponto. Abacate com sal, azeite e limão pra lembrar que é bom ser azeda.

Fez um sol de rachar lábios e pingar suor grosso. Cada poro do tamanho de uma América Latina num coração balançando ao atlas musical que tocou Grécia e Portugal, tocou Espanha e as Arábias. Me tocou orelhas, pés, pescoço e uma coluna biônica eternamente em recuperação que sacudia tudo. O corpo subiu no sofá, ignorou o cheiro de mijo de gato que o tira-odores superpower não tirou e dançou sem parar até a exaustão, caindo em gargalhadas, lambido pelas cadelas roucas de tanto latir com a louca do sofá que gargalhava e rodopiava sozinha. Não ficou nenhuma costela no lugar, foi tudo defumado em suor. Este corpo que se recusou a tomar banho por horas depois do suadouro daria uma suculenta feijoada.

A perda de auto-controle é tão libertadora.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Das coisas enterradas no jardim

O ser humano não é apenas matéria, é também espírito. Ou assim tentamos crer. Entendemos os eclipses, a virada das marés, o conceito de Big Bang, a evolução de primatas a homo sapiens a homo informaciones nesta época de blogs, Twitter e Facebook. Entendemos que somos carne, mas prosseguimos na busca do entendimento do que há por trás dela, ou dentro dela ou além dela. Tem algo a mais além de átomos e células e mitocôndrias que dá a ignição para nos mantermos alertas e que nos faz seres conscientes da própria consciência. Chame de Deus, de Deusa, de Força Universal. Viver a vida racionalmente é um caminho, mas viver com elementos de misticismo e fé atrelados, certamente faz desta uma jornada mais rica. E como pode ser mística a vida aqui na fronteira! Há três semanas um causo curioso me ocorreu fazendo reativar minha dormente fé. Um causo que envolve caveira de porco, chifres de veado, vela de pimenta forte, ovos de galinha de capoeira, um bruxo travesti e um santo enterrado no jardim de casa. Eu, que vivo na fronteira entre o crer e o não crer, sempre pendendo para a primeira alternativa, por via das dúvidas saí em busca de auxílio para reverter um feitiço que havia sido lançado contra meu matrimônio.

Há um jardim plantado na frente de casa. Arbustos verdes bem cortados com pequenas flores roxas que proliferam no verão. Nunca fui de saber o nome das flores, mas sempre soube apreciá-las. No princípio do outono plantamos uma roseira que aos poucos está vingando. Naquela tarde de outubro, três dias após o meu casamento, descobrimos que haviam plantado à nossa revelia algo um pouco mais medonho: uma caveira de porco selvagem e três chifres de veado. Tudo enfiado num balde semi-enterrado no canteiro e que com certeza absoluta não estava lá pelo menos duas semanas antes. Minha mãe descobriu a "encomenda" por acaso enquanto esmiuçava o jardim. Achou a caveira perturbadora, mas os chifres tão lindos que chegou a limpá-los para decorarem a casa. W. pediu para não mexermos em nada, e temendo que pudesse ser algum tipo de ameaça, chamou amigos policiais para investigarem. A investigação não chegou a conclusão alguma, mas eu não tive dúvidas: é despacho, mandinga, macumba e é coisa de mulher!

As expressões "corno", "chifrar" ou "cornear alguém" não fazem o menor sentido para o americano comum, mas no México carregam o mesmo significado que para nós brasileiros. Conversando com locais mexicanos e descendentes descobrimos que eu não estava enganada: era feitiço e tinha a intenção de separar o casal através de infidelidade, representada pelos três chifres. E para trazer ainda mais dramaticidade à esta insólita história, ainda havia uma conexão satânica, simbolizada pela caveira de porco. Valei-me, meu Oxóssi!

Jamais imaginei que quando saí do Brasil para vir ao Texas eu fosse ter contato com este tipo de misticismo. Eu sempre fui muito medrosa em relação a espíritos, demônios, capetas e etc, certamente influência da educação em colégio católico que deixou alguns traumas na minha psique. Como eu morava perto de uma encruzilhada, de vez em quando apareciam umas galinhas pretas com farofa na esquina. Eu morria de pavor e passava longe. Quando morei em Iowa e no Kansas há mais de uma década, raramente meus medievais medos passavam pela cabeça, pois tudo lá era tão material. Por mais que vez por outra eu fosse à igreja (como parte de uma aventura cultural e sempre acompanhando alguém), a vida naquelas terras transpirava a matéria pura e simplesmente. A própria natureza dos cultos protestantes que eu atendia, exceto os da Igreja Batista, não dava tanta margem ao misticismo quanto as missas católicas. Meu medo naqueles tempos era de solidão, algo que já não sinto mais (a vida me ensinou que sozinhos sempre fomos e sempre seremos, mas que ser solitário ou não cabe a cada um). Mais tarde na vida entendi melhor as manifestações religiosas e passei a respeitar as oferendas. No Rio de Janeiro eu sempre pedia licença quando topava com uma -- e se você fizer uma trilha pela Floresta da Tijuca, encontrará várias. Mas diferentemente do meio-oeste americano, aqui nesta fronteira de Estados Unidos e México matéria e espírito se entrelaçam. O catolicismo é fervoroso, ainda que todos pratiquem os habituais pecados, e os elementos de sincretismo religioso são fortes e visíveis, como o culto de adoração à Santa Morte, que merece um texto só para ela. Vísivel também, como acabei de conhecer, é mandinga das bravas. Não cheguei a sentir medo do despacho no meu jardim. Senti mais foi indignação em saber que alguma alma-viva sebosa se deu ao trabalho de catar aqueles ossos e despejar negatividade para minha família.

Como não posso sair do país até meu greencard chegar, minha amiga M., a quem relatei a história, tomou o assunto com urgência e tratou de levar minha mãe a uma hierbería (casa de artigos religiosos e de santería) em Nuevo Laredo, México. M. é mexicana e conhecedora da alma deste lugar, com PhD da vida em homens inescrupulosos, inveja feminina, feitiçarias e mandingagens. Afirma que era uma pessoa descrente até quando passaram a lançar despachos contra ela e sua casa foi tomada por demônios que infernizaram sua vida e a dos seus filhos, arranhando as paredes, batendo portas e fazendo toda sorte de demonices. Desde então, M. nunca deixou de tomar todas as precauções possíveis para se defender da negatividade alheia, como andar com santinhos na bolsa, no carro e rezar muito. Naquela noite, M. e minha mãe voltaram do México com um pequeno arsenal de proteção contra o mundo dos espíritos ruins: três velas regressoras de feitiço (instrução: acender de cabeça para baixo e em seguida colocá-las no chão formando um triângulo; dentro dele eu deveria escrever o meu nome e o do meu marido); uma vela para o anjo da guarda (instrução: enfiar na cera papeizinhos com os nomes das pessoas por quem peço proteção, com o cuidado de acendar a vela de cabeça para baixo); uma vela de chili (pimenta forte) para levar embora a inveja e o olho grande (instrução: enfiar na cera papeizinhos com os nomes das pessoas que possivelmente poderiam sentir inveja minha e do meu marido, com o mesmo cuidado de acender a vela de cabeça para baixo); um incenso para limpar o ambiente; e dois ovos de galinha de capoeira que fariam parte de uma sessão de desfaz-feitiço organizada por uma senhorinha do lado de cá da fronteira.

Como a tal senhorinha desmarcou de última hora a nossa pajelança, M. nos levou para uma consulta com Luis, que atende numa hierberia no lado sul de Laredo, Estados Unidos, área notadamente mais pobre e com estigma de gueto. Era uma loja semelhante às de artigos para candomblé e umbanda comuns no Brasil, exceto que em vez de imagens de Iemanjás e São Jorges proliferavam imagens da Santa Muerte. Não me prolongarei sobre este fascinante culto, mas posso dizer que depois daquele dia a Morte representada por aquela cadavérica senhora vestida de preto deixou de ser algo amedrontador. Mas até eu conhecer os fatos sobre a Senhora-do-Além, sentia um desconforto seguido de frio na base da espinha naquele lugar repleto de imagens, fumaça de incenso, cheiro de velas queimando e oferendas de maçãs, tequila e flores.

Luis chegou e se dirigiu a uma salinha onde fazia suas consultas de tarô em frente a um altar repleto de oferendas e velas para uma Santa Muerte do meu tamanho. Luis tinha uma cara enorme com uma papada sobressaltante, cabelo castanho-acaju com cachos duros de laquê descendo até os ombros, olhos pequeninos pintados com sombra escura e várias camadas de rímel. Vestia saia curta e uma camiseta colada no corpo grande e inchado, deixando aparecer o decote nos pequenos seios. Sua pele marrom-escura estava coberta por vários colares, pulseiras e anéis de ouro. Se apresentou como Fer, seu alter-ego travestido, e exibia um ar de mistério e sedução. Fui direto ao ponto e expliquei a razão da minha presença. Ao mostrar a foto da caveira com os chifres, Luis/Fer começou a indagar sobre o passado amoroso do meu marido até apontar precisamente que foi uma ex quem preparou o despacho, dando praticamente nome aos bois. "Não porque ela seja apaixonada por ele, mas ela não quer vê-lo feliz." A mesma ex que meu marido, embora incrédulo, disse dias antes ser a única pessoa que poderia se dar ao trabalho de fazer, bem, um trabalho. Luis/Fer garantiu que tudo ficaria bem, mas que para quebrar o despacho eu deveria acender uma vela de 7 dias com aroma de maçã e limpar a casa com a Água Espiritual 7 Potências.

Logo após a consulta, minha casa estava repleta de velas e devidamente higienizada com a água bentificada. Não me dei ao trabalho de enfiar papeizinhos na cera e acabei fritando uma boa omelete com os ovos de galinha de capoeira. Mas até meu marido W., que é extremamente cético a ponto de rir de tudo o que eu estava fazendo, passou a usar um escapulário que minha tia havia lhe presenteado. Nestes mesmos dias havíamos ganhado de presente de casamento uma imagem de São José. Segundo o costume local, caso você queira vender sua casa, algo que estamos tentando há quase um mês, deve-se enterrar o santo de cabeça para baixo no seu jardim. Quando o milagre for atendido, o santinho deve ocupar lugar de destaque na nova residência. O enterro (tortura?) do São José teve, assim, duplo significado: funções imobiliárias e protetoras de possíveis futuros despachos. Em tempo: por que tanta fissura com coisas enterradas por aqui?

Expliquei ao meu pai todos os pormenores da história e perguntei o que ele teria feito no meu lugar. Do alto da sua sabedoria e praticidade, o homem não hesitou: "sentava no lugar onde acharam a macumba e cagava em cima." Acho que realmente uma boa cagada depois de um almoço regado a brócolis e repolho daria conta: reverter mandinga com catinga. Mas eu não conseguiria ir por um caminho tão racional. Se no reveillon na praia peço luz e proteção com velas acesas e flores ao mar, por que não acrescentar um pouco de firula mística a um episódio enraigado numa crença popular? Depois de tanta vela acesa creio que não sobra mais nem pó das intenções maléficas dirigidas ao meu lar. Mas não custa nada passar um sal grosso no corpo e fazer umas orações vez por outra. No fim das contas, bem ao meu estilo Poliana de ser, até agradeço à mandingueira de plantão por não apenas ajudar a reacender a minha fé, como também a me fazer vivenciar a deliciosa experiência cultural do submundo espiritual da fronteira.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Política de chapinha

Certas realidades são tão bizarras que parecem causos saídos de crenças populares. Alguns tão fantásticos que nem novelas de Gloria Perez conseguiriam tamanha inventividade. Aqui nos Estados Unidos, o Texas certamente é um celeiro de realidades fantásticas. A última delas é de um dos candidatos a governador pelo partido democrata.

Farouk Shami é palestino naturalizado americano que imigrou para os Estados Unidos na década de 1960. Personificação do sonho americano, chegou neste país com apenas US$75 e fez uma fortuna bilionária no ramo de beleza. Sua grande invenção foi a primeira coloração para cabelos sem amônia (ah, sim, nós gostamos disto). Suas três marcas de produtos para cabelos e pele, BioSilk, Sunglitz e CHI, são exportadas para 50 países. Sua plataforma política é trazer "milhares de empregos para o Texas". Desta forma, chegou a fechar uma fábrica na China e está abrindo outra em Houston.

Tive a oportunidade de vê-lo pessoalmente ontem à noite durante um evento político. Na verdade eu havia ido ao evento da candidata Sylvia Palumbo a tesoureira do condado de Webb, que tem Laredo como sede. Confesso que não fui por vontade própria, mas como esposa-acompanhante de W., que apóia sua candidatura. Ao final do evento vi dezenas de mulheres do lado de fora carregando bolsas com produtos de beleza. Uma delas soltou para mim: "vai lá pegar uma pra você também." Eu, com minha fraqueza por shampoos, não resisti.

Descobri, assim, que Mr. Shami estava na sala adjacente, num ambiente que contrastava berrantemente do solene e tradicional evento de Mrs. Palumbo. Ali ao lado, nada de luz branca incadescente, almôndegas nem palitos de aipo e cenoura em estilo self-service. A festa de Farouk estava iluminada com jatos de luz estroboscópica; a música era de boate, inclusive tocava uma canção brasileira animadíssima que eu nunca havia ouvido antes; os aperitivos incluíam mexilhões gratinados servidos individualmente em pratinhos por vários garçons; e um locutor anunciava sem parar: "Aguardem, aguardem! Daqui a pouco sortearemos as chapinhas CHI, alta tecnologia para seus cabelos!" No centro da sala lotada, 90% por mulheres, estava o senhor Farouk Shami, pequenino, pele esticada, abraçado a várias louras oxigenadas pelo menos dois palmos mais altas que ele, exibindo orgulhosas seus cabelos lisíssimos. Ele sorria ainda mais orgulhoso que elas, tocando e cheirando seus cabelos num momento Hug Hefner de ser, enquanto os flashes não paravam de brilhar. Apesar de achar tudo aquilo deliciosamente bizarro, entrei na fila para pegar meu kit CHI com shampoo, condicionador, spray de brilho e um panfleto de "Farouk Shami para Governador do Texas 2010". Abracei meu ondulado e deixei a chapinha pra outro dia. Saí dali pensando: isto sim é que é comício!

Política, shampoo e chapinha: genial! Este homem realmente é um bravo: não apenas é nascido na Palestina, como também tem nome árabe (pelo menos Barack Housseim Obama já abriu o caminho) e quer concorrer a governador pelo partido Democrata em um dos estados mais conservadores dos Estados Unidos, distribuindo ao Texas cabelos mais belos e lisos. Nem Odorico Paraguaçú seria tão criativo. Como as fotos mostram, para sua campanha ele deu uma turbinada no visual. Nada de bolsinha sob os olhos: bolsinhas agora, só com shampoo dentro.

E quem disse que o Brasil é o país da piada pronta? Vem para o Texas você também, vem!

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"Yes, I do"


Dizem que quando você passa por uma situação de morte iminente sua mente produz um curta-metragem que resume sua vida em segundos. No dia do meu casamento, algo semelhante ocorreu comigo, porém com uma diferença em conteúdo: vi a minha vida amorosa passar na minha frente em segundos. Segundos que iam e voltavam ao longo de todo o dia 16 de outubro de 2009. Não é à toa: sair da solteirice e tornar-se Sra. Seu Marido é também uma espécie de morte. Mas nada de luto e sentimentos negativos: falo aqui da morte como renovação, conforme é interpretada pelos mexicanos dos dois lados desta fronteira onde temporariamente habito. Finda-se uma fase e começa-se outra. E a minha nova fase, com assinatura registrada em cartório, testemunhas e alianças, foi sacramentada num final de tarde quente, úmido e lindo do outono texano, sob uma chuva de milhares de borboletas que enfeitaram o Lago Casablanca como confeti da natureza enviado especialmente para brindar os noivos.

O formato final do casamento surgiu apenas três semanas antes da data oficial. W., que no passado se casou com todas as pompas, queria fazer do seu segundo casamento uma cerimônia extremamente simples. Como casamento é também negligenciar certas vontades, acabei cedendo: em comum acordo, optamos por um formato tradicional de casamento em cartório apenas com a presença de duas testemunhas. O modelo mais simples e o mais absolutamente nada a ver comigo. Nunca sonhei com festão de casamento, nem com igreja enfeitada, nem mesmo com casamento em igreja. Mas também jamais pensei em fazer algo tão burocrático. À medida em que a data se aproximava, eu já pressentia um arrependimento que duraria pelo resto da vida. Além da minha própria vozinha interior, eu também escutava de amigas casadas (algumas pela segunda vez) e amigas divorciadas que deveríamos fazer alguma celebração. Existem momentos que definitivamente devem ser celebrados, empanados em purpurina, sorrisos de amigos e bênçãos da família, e casamento é certamente um deles. Casar não é igual ir a padaria comprar pão. Você está comprando uma viagem alucinante, sem roteiro detalhado, apenas uma vaga idéia baseada nas experiências alheias e no seus instintos mais viscerais. Foi em setembro, quando eu encontrei meu vestido de noiva perambulando pelo shopping Mall del Norte, que a entidade burocrática que havia encarnado em mim começou a ser exorcizada. E num único telefonema que dei para a juíza confirmando a data da cerimônia, todos os detalhes do que seria a minha boda-tudo-a-ver-comigo surgiram como se eu já os tivesse ensaiado ao longo dos anos. Mal acreditei quando W. não apenas concordou com o formato final, como também quando seus pequenos olhinhos verdes brilharam mais fortes quando mencionei os pequenos detalhes que tinha em mente.

Algumas fortes emoções acompanharam os últimos momentos da preparação da boda. Pavor e pânico número um: dois dias antes do casório, o zíper do vestido não fechava nem a pau! Tentei acreditar que era o fecho que estava duro, mas tive que encarar a realidade: de todas as noiva que conheci, eu fui a única que engordou. Corri para a loja desesperada e ufa, um último número num tamanho imediatamente maior ainda estava no cabide. O ajuste ficou perfeito e a saga da busca pelo tão adorado vestido finalmente acabava ali.

Pavor e pânico número dois: a cinco dias do casório a aliança de W. ainda estava na Irlanda. W., que tem ascendência irlandesa, havia escolhido um modelo celta. Eu comprei a jóia pela Internet um mês antes do casamento e jamais poderia prever tamanha demora na entrega. Acompanhamos ansiosos o percurso da aliança pelo link do site dos correios. Um dia antes da cerimônia a aliança finalmente chegou a Laredo. Entrei em contato com os correios, que para aumentar o suspense explicou que a aliança seria entregue até as 15h do dia do casamento --sendo que a cerimônia estava marcada para as 17h! --e que antes desta tentativa de entrega não poderíamos buscar a encomenda pessoalmente. Eu já previa uma daquelas alianças de doce de criança sendo usada como substituta. Na manhã do grande dia, W. contou que se casava naquela tarde e conseguiu convencer os correios a entregar o pacote antes do horário de entrega oficial. Em Laredo, tudo é possível.

O relato do dia do meu casamento com W. começa com o detalhe pensado após todos os outros detalhes: o dia de noiva. Fiz questão de que fosse digno da minha purpurinice. Apesar do dinheiro contado em minhas parcas economias, não hesitei em ir no melhor salão e day spa da cidade. Comecei com uma sauna para desintoxicar meu corpo de qualquer medo e insegurança (a noiva que disser que não sentiu uma pontada destes sentimentos no dia do seu casamento está mentindo). Dali, segui para uma salinha escura de repouso que tinha na parede uma grande foto iluminada mostrando uma caudalosa fonte, como que para levar sua mente embora naquela espuma branca. Me ofereceram água ou vinho: não hesitei em escolher o chardonnay. Com o estômago vazio, o vinho começou a surtir uma deliciosa e relaxante embriaguez. Naquele momento, o filminho da vida amorosa começou a rodar: as brincadeiras de casinha na infância (curiosamente, eu e minhas amigas quase sempre dizíamos que o marido estava viajando); a primeira paixãozinha do colégio; o primeiro beijo aos 12 anos; os amores da adolescência; os amores da vida adulta; os homens que me endeusaram; os homens que não me valorizaram; os homens que viraram amigos; os homens cujos corações eu parti...todos, até culminar com a cena daquela manhã, em que eu e W. acordamos juntos e a primeira coisa que ouvi foi "feliz dia de casamento, meu amor". Naquela sala, o compartimento sentimental da minha mente estava a mil. Pensei na cerimônia que seria dali a poucas horas, lembrei dos familiares e amigos que não estariam presentes. Uma lágrima escorreu involuntariamente, mas nada disto, o momento é de alegrias, se eu pudesse fretava um avião e traria todos para cá, ou voaríamos até o Caribe e faríamos um luau por três dias e três noites sem parar, ou colocaria todos num barco no Rio São Francisco e comeríamos bode assado durante uma semana ou então... "Senhora, por favor me acompanhe para sua hidromassagem". Aquele frenesi de neurônios fez uma breve pausa durante os segundos entre a sala de repouso e a hidro. Mas foi apenas deitar naquela banheira para os próximos 40 minutos de uma intensa hidromassagem em leite de coco combinada com a fantástica massagem pelas mãos de uma massoterapeuta, para o burburinho de neurônios voltar. Eu boiava sobre a água naquele quarto à meia-luz com cheiro de fruta, cheiro de vela e música de meditação. Eu me purificava naquela água e nela me batizava, deixando para trás minha solteirice, todas as suas alegrias e dores, e entrava num casamento, com igualmente todas as suas dores e alegrias. Um pé no sonho e outro na realidade, cada um tem que encontrar sua forma de equilíbrio. Já refeita do meu momentâneo delírio catártico, parti para o último tratamento, mais uma hora de massagem sueca profundamente relaxante. Terminei meu combo-Cleópatra me sentindo uma pena de tão leve e tranquila. Tomei uma ducha forte e segui para a área do salão de beleza.

Uma semana antes eu havia ido ao salão para deixar todo o pacote pago e escolher o meu penteado. Tinham até tirado uma fotocópia do modelo que gostei e deixado separado para o dia oficial. Claro que vida sem emoção não é nada: no dia oficial perderam a foto. A cabeleireira fez um penteado que até hoje fico na dúvida se gostei ou não. Era definitivamente um ninho de passáros. Tinha ao mesmo tempo uma anarquia e uma harmonia que me encantava e me repelia. No ano passado fui ao casamento da minha amiga Cecília e me arrumei juntamente com ela e sua mãe no mesmo salão. Achei lindo mãe e filha compartilhando aquele momento -- há algo de poderoso neste processo de embelezamento onde criadora e criatura interagem -- e desejei desde então que o mesmo ocorresse comigo. Desejo atendido: minha mãe, que há apenas dois dias havia retornado a Laredo especialmente para celebrar a data, chegou ao salão. Com o cabelo aprovado pela progenitora, era hora de seguir para a maquiagem.

Eu temia que me deixassem com cara de drag queen, a maquiagem oficial de Laredo, seguida do estilo "gueixa latina". As lareirenses adoram uns looks pavorosos seja dia ou noite, baixo sol ou chuva: argamassa de base e pó, blush em excesso, sombra escura e pesada, delineador da grossura de um dedo e cílios grudados por dezenas de camadas de máscara. Mas a minha maquiagem foi nota 10. Gostei tanto do serviço que desejei nunca mais lavar meu rosto. O buquê chegou da floricultura e eu me enamorei com a delicadeza das rosas brancas. Estava lindo, discreto e elegante. Eu já era um projeto quase pronto de noiva. Também havia encomendado uma orquídea natural para meu cabelo, mas não caiu bem. Por sorte, o salão vendia acessórios e achei um enfeite com pérolas que combinou perfeitamente com a ocasião. Coloquei o vestido e eis que diante do espelho vi uma noiva de verdade. Uma noiva bem eu, com um vestido que não era uma fantasia de noiva, mas um vestido eu com cara de noiva. Um vestido curtésimo, o que levou minha mãe a falar incessantemente, até minutos antes da cerimônia, que eu deveria usar uma meia fina, algo que certamente não fiz. Uma noiva rechonchuda comparada com meu peso normal,com braços e pernas grossas, mas gostando muito do conjunto que via. E eu não queria mais largar aquele buquê. Incorporei a noiva, encarnei a personagem e parti para a cerimônia escoltada por minha mãe, o padrasto de W. e sua esposa, que juntamente com as três sobrinhas de W. pegaram estrada e avião de Kansas e Maryland para celebrar o momento.

Chegamos ao Lago Casablanca e uma nuvem de milhares de borboletas de várias cores nos recebeu, pequenos leques flutuantes abanando o calor daquele final de tarde. O tempo amanheceu nublado naquela sexta-feira, mas duas horas antes da cerimônia, abriu: o sol saiu completamente, dourado e morno, emoldurado por um céu azul de esparças nuvens. Uma monarca pousou no meu buquê. A natureza celebrava com delicadeza e graça. Uma brisa constante soprava nossos cabelos. Não quis me importar mais com laquê: daquela hora em diante deixei o vento soprar, o cabelo assanhar, o salto doer, o batom escorrer. O barco que serviria de altar estava decorado com flores brancas. O barco que simbolizava a grande jornada na qual estávamos embarcando e que nos traria sorte para passarmos a vida viajando como sempre sonhamos. A violinista tocava Bach. Passageiros e tripulação somavam 13 pessoas, número forte: minha mãe, os padrastos e sobrinhas de W., a juíza amiga de faculdade de W., o casal de testemunhas, a violinista e o amigo capitão do barco. Decidi de última hora que queria ser levada até W. por minha mãe. Ele me esperava no barco vestindo camiseta preta, blazer e calça marfim, combinando com meu vestido. Eu não conseguia parar de sorrir.

Navegamos até o meio do lago. No percurso, famílias e pescadores prestavam atenção no barco florido. Ancoramos e então, em meio às águas do Casablanca, a juíza leu os votos oficiais de casamento. Só ali foi que a ficha caiu completamente: era tudo verdade, eu estava me casando e aquilo ali não era encenação. Eu estava me casando, e in English. Eu estava me casando com W., meu amigo que conheci há nove anos e que em menos de dez meses de namoro, duas idas dele ao Brasil e duas vindas minhas ao Texas, virou meu amor, meu esposo, meu digníssimo marido. Prestei atenção no discurso breve da juíza e também gostei do que ouvi: que a vida a dois não será fácil e que será preciso ter muita força de vontade para superar as dificuldades. É bom ser avisada destas cláusulas contratuais emocionais. Eu e W. também lemos em voz alta um voto de casamento celta que escolhi em sua homenagem. O que mais me encantou neste voto foi que trata o homem e a mulher como iguais, nenhum dono do outro, mas ambos pessoas livres que oficializam por vontade própria que cuidarão um do outro. As cerimônias de casamento celtas eram realizadas por uma sacerdotiza, portanto foi uma bem-vinda coincidência (existem coincidências?) que tivemos uma juíza celebrando a nossa.

Trocamos as alianças -- e pela primeira vez vi sua reluzente e dourada aliança celta fazendo par com meu diamante de noivado. "Yes, I do", ele disse. "Yes, I do", eu disse. O beijo. Por fim, incorporamos um ritual brasileiro de ano novo, porque assim como o ano novo o casamento é um começo: cada convidado recebeu uma rosa branca e fez um desejo ao seu Deus pedindo bênçãos aos noivos. Havia cristãos, judeus e mulçumanos reunidos.Em seguida, todos jogaram as rosas ao lago. Nosso lago de rosas. Treze rosas brancas alimentando as águas. Fiz um breve discurso de agradecimento aos que estavam presentes. A voz embargou e as lágrimas escorreram. Estouramos champanhe e comemos os bem-casados e alfajores que minha vizinha petrolinense que fez questão de enviá-los. Borbulhas e doces para brindar a nova vida, do jeito que eu gosto.

Dali partimos para jantar num tradicional hotel de Laredo, o La Posada, num esquema super informal de cada convidado pagando o seu jantar. Aproximadamente outros 10 convidados se juntaram a nós. Partimos o bolo encomendado especialmente para cerimônia. Juntamos todas as solteiras e nos dirigimos ao pátio. Tirei o salto alto e me deixei ainda mais à vontade. Começar a vida nova sem torturas! Subi uma escadinha e joguei para trás o buquê de rosas brancas que caíram nas mãos da minha instrutora de hidroginástica, que não apenas tem se mostrado uma amiga querida, como também tem uma longa história de amor com o Brasil. Não, certas coisas não podem ser apenas coincidências.

Tantas bênçãos, tantos símbolos, tantos planos, tantos desejos de sermos o melhor que podemos ser. Tantas decisões tomadas em nome de se iniciar uma família, como a minha decisão de mudar de sobrenome. Jamais imaginei que faria isto. Não faço parte de nenhuma família tradicional ou conhecida, mas sempre tive orgulho do nome que fui registrada. Por que eu tenho que mudar e não meu marido? Mas mudei. Foi meu presente a W. e sei que ele gostou, pois não esperava isto de mim. A legislação brasileira não permite que eu omita meu sobrenome, portanto apenas acrescentarei ao final o sobrenome do meu marido. Dentro de casa sinto que algo mudou. Dentro de mim sinto que algo mudou. Me sinto mais segura. Agora esta também é a minha casa. Agora as decisões serão tomadas em conjunto. Agora é oficial e gosto desta sensação de ordem que a oficialização traz. Gostei de morrer solteira para renascer casada. E que venham as outras fases e ritos de passagem. A viagem continua.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Vestido de noiva

Por mais independente, bem resolvida e despojada que seja uma mulher; por mais descolada, mais pra frente e mais "muderna" que seja uma mulher; por mais mulherão, mais furacão, mais "tô nem aí" pras instituições que seja uma mulher, no fundo do seu coraçãozinho pulsante ela carrega uma criatura que só usa vestido cor-de-rosa e suspira com pestanas apaixonadas. Esta sósia ao avesso se chama mulherzinha. Uma mulherzinha que sonha com o príncipe encantado na hora de dormir, mesmo que sua plena e intensa vida amorosa a tenha feito compreender que assim como dentro de toda mulher existe uma mulherzinha, dentro de todo homem existe um sapo, muitas vezes um baita dum cururu grande, verde e bizarro. Esta mesma mulherão-mulherzinha que descobriu a intrínseca relação entre humanos e anfíbios (no caso feminino, a perereca é o elo perdido) sonha, desde os tempos de menininha, com aquele dia, o grande dia, o supostamente maior dia da sua existência: aquele em que ela olha nos olhos do seu príncipe-sapo e, explodindo de emoção, diz "sim, serei sua para o resto de nossas vidas." Mas antes de chegar nestes finalmentes, teve um outro detalhe que ela não deixou passar desapercebido: o vestido de noiva. Eis aqui um breve relato do meu momento mulherzinha.

Foi sábado passado e fazia um dia lindo, quente e úmido. Numa cidade onde não há nada culturalmente interessante para se fazer, o que se faz? Vai às compras. Saí de casa para uma breve sessão de tortura, sabendo que eu não poderia gastar: apenas para olhar, fazendo as vezes de consumidora inteligente que dificilmente sei ser. Perambulando pelas lojas do shopping, pelos infinitos balcões de maquiagem e prateleiras de sapatos, me dei conta que me casaria dali a menos de um mês. Já estava quase conformada com o formato burocrático do que seria a minha boda: uma visita ao cartório local, uma troca de votos de cinco minutos e que vivam felizes para sempre. A minha mulherzinha já estava morrendo sufocada de tédio com falta de gliter na veia. Parei para um café e a cafeína teve um efeito ressucitador: "não me assassine. Procure um vestido. Um vestido de noiva."

Flasback. Lá nos idos dos anos 80 eu, pirralha, olhava revistas de noivas e procurava pelo modelo ideal. Era uma época de mangas bufantes, horrendas, noivas à la merengue de limão. Achei um tomara-que-caia perdido entre as páginas e fiz ali minha escolha. Vi pela primeira vez que havia vestidos que não eram brancos, mas perolados. Gostei, mas a minha mulherzinha-tradição dizia que para casar, só se fosse de branco. Mesmo que fizessem troça com o fato de casar de branco. Cresci numa terra machista, onde virgindade ainda era trunfo, onde homens e mulheres iam aos casamentos e cochichavam maliciosamente que aquela noiva nunca deveria ter se casado de branco. Ainda: fui criada por uma mãe moderna que dizia que vestido de noiva era algo cafona, coisa de festa a fantasia. Cresci com amigas bem mulherzinhas, mas também com amigas modernas que abafaram suas mulherzinhas e abraçaram a máxima que vestido de noiva é brega. E finalmente: nunca entendi por que minha mãe comprava aquelas revistas, afinal ela não apenas achava vestido de noiva coisa cafona, como também já estava casada há tanto tempo. Minha mãe que casou no cartório de botas de cano alto, saia plissada xadrez, blusa de manga comprida e lenço de seda na cabeça. Quando pequena achava um horror, mas hoje acho o máximo. Mas foi preciso chegar o momento de eu comprar o meu vestido para me dar conta que, como ela não se casou dentro de um, sua mulherzinha certamente aparecia como noiva-fantasma e pedia oferendas em formas de revistas.

Comecei a entrar de loja em loja procurando um vestido branco. Um vestido branco, curto e moderno. Um vestido que eu pudesse usar depois, que não tivesse cara de festa a fantasia. Um vestido sóbrio porém sexy. Até pouco tempo atrás um editorial da Marie Claire dizia que branco era o novo preto. Mas certamente esta moda não chegou aqui na fronteira, muito menos nesta entrada de outono repleto de cores escuras. Até achei um perdido numa arara nos fundos de uma loja, mas o tecido era ruim, o corte era ruim, tudo era ruim e eu mal conseguia respirar de tão apertado. Comecei a mudar de idéia e a achar que meu vestido de noiva seria vermelho. Por que não? Minha mulherzinha-libertina começava a dar pulos, golpeando a mulherzinha-tradição.

Flashback. Sou de uma cultura obsecada por casamento, por tradições rígidas para certos ritos de passagem e, consequentemente, pelos vestidos que fazem parte destas tradições. Eu não tive festa de quinze anos. Nem baile de debutantes. Minha mãe achava cafona. Minhas amigas mais próximas achavam cafona. Eu também achava cafona, mas minha mulherzinha-tradição pestanejava apaixonadamente em segredo com aqueles vestidos de princesa. As aniversariantes e debutantes trocavam até três vezes de roupa na mesma festa. Nos meus quinze anos fui comer pizza trajando um conjuntinho de malha roxo colado no corpo. Nunca vou me esquecer daquele vestidinho. Não porque eu fosse louca por ele, mas porque no fundo ele foi o substituto do vestido branco que eu nunca tive.

Circulei o shopping inteiro. Havia uma última loja, uma enorme loja de departamento para entrar. Resolvi ir embora. Porém, a alguns passos dali, o resto da cafeína que ainda circulava no sangue me mandou dar meia volta volver. Um sexto sentido em ação. E eis que no lado esquerdo da escada rolante do segundo andar da Dillard's, eu o encontrei. Ele. O vestido. Tecido maravilhoso, corte impecável. Simples, elegante, sexy e jovial. De marca, BCBG Max Azria, a um preço excelente, "com 20% de desconto somente até amanhã se você preencher esta ficha cadastral." E ainda havia um modelo no meu número.

Enquanto o atendente foi buscá-lo, lembrei de um programa na TV que mostrava noivas comprando seus vestidos. Noivas felizes, nervosas e ansiosas com champanhe na mão escolhendo o vestido que usariam uma única vez nas suas vidas. Lembrei de todos os filmes e séries de televisão com cenas de noivas escolhendo seus vestidos. E senti uma vontade enorme de poder compartilhar aquele momento com as minhas amigas, com a minha irmã, com a minha mãe. Contudo, não deixei a melancolia me dominar. Lembrei também que praticamente durante toda a minha vida adulta, estive sozinha enquanto fiz minhas compras de roupas. O atendente chegou. Experimentei o vestido. Ele fechou o zíper nas costas. Ele era gay e fiquei feliz por isto. O caimento ficou perfeito -- verdade, um tantinho de nada apertado no peito, mas não visivelmente apertado. Ele era meu, eu sabia. O vestido de matalassê acetinado de cor perolada com flores aplicadas no busto e laço preto na cintura. Curto. Super curto. Nada de superstições com cores, nada de puritanismo, por favor. Minha mulherzinha-moderna estava embriagada de felicidade. Liguei para o noivo: "honey, achei." "Hum, que bom. Quanto?" "US$ X". "OK. Pode vir aqui em casa buscar o cartão". Minha mulherzinha-tradição quis que o noivo pagasse pelo mimo. E a mulher dona-de-casa que já compreende os hábitos de compra do seu futuro marido se surpreendeu com o fato de ele não ter hesitado nem por um momento sequer.

Pedi ao atendente para separar o vestido, enfatizando a cada três palavras que era o meu vestido de casamento. Meu-vestido-de-casamento-OK? O simpático atendente disse que eu não precisava me preocupar. Saí do shopping flutuando. No carro, a caminho de casa, ou melhor, a caminho de buscar o cartão de crédito, liguei o som a toda altura e cantei cada música com toda a força dos meus pulmões durante os 15 minutos de viagem. "Minha pequena Eva, Eeeeeeva, o nosso amor na última astronave, Eeeeva (...)", "E pra vocês eu deixo apenas o meu olhar 43, aquele assim (...)". Eu estava histérica e mesmo que aquelas letras não fizessem qualquer sentido, aquela foi a trilha sonora da minha radiante felicidade.

No fundo, eu sabia que não era apenas o vestido. Era ele também, mas não ele somente. Era o rito de passagem. A evolução rumo a esta etapa que eu nunca achei de fato que fosse o maior dia na vida de uma mulher, e até duvidei se fosse acontecer um dia comigo. Havia tanta coisa para se fazer nesta vida; casamento era apenas uma consequência, um acaso ou mais uma possibilidade. Continuo achando. Mas minha mulherzinha anda bem sorridente estes dias. Ainda: a partir do vestido, decidi mudar radicalmente o formato de casamento em cartório. Não à burocracia, sim ao gliter! Mas esta história eu deixarei para depois.

Momentos mais tarde, já chegando em casa com o vestido em mãos, pedi para W fechar os olhos enquanto eu escondia o mimo no closet. Minha mulherzinha-mulherzinha se deixou levar por superstição: nada do noivo ver o vestido até o dia do casamento. Eu estava feliz. W estava feliz. Ele sabe que tem certas coisas que não se deve nunca negar a uma mulher. Meu sábio príncipe-sapo.

sábado, 19 de setembro de 2009

Zunhe-me

Ela tinha as maiores unhas que qualquer mulher dona de casa jamais ousou ter na vida. Unhas gordas e longas. Garras superlativas. Esmalte cor-de-abóbora com cristais na ponta, nenhuma lasca, nenhuma cutícula por fazer, nenhuma sujeira por baixo. Apenas o abóbora reluzindo naquele final de tarde, numa cidade que cheirava a pó quando a chuva chegava. E chovia. Era baixinha. Era larga. Tinha cabelos negros grossos e mal-cuidados. O zelo estava depositado naquelas unhas, naqueles cristais, naquelas pontas quadradas duras como cimento. Quantas manicures vietnamitas por semana? A chuva. Um homem sai do carro. Caminha rápido para não se molhar em direção à mulher de unhas fenomenais. Ele é magro. Ele é franzino. Ela ocupa duas vezes o espaço do seu corpo. Ela sorri com seus olhos pequenos borrados sobrecarregados de sombra, lápis, delineador e rímel. Com o braço esquerdo ele enlaça sua cintura. Ela repousa as intermináveis unhas sobre o seu quadril. Para ele o mundo pode acabar ali. Seu mundo por uma zunhada cor-de-abóbora.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Independência, vencedores e vencidos

Em 16 de setembro o México comemorou seu 199o. aniversário de independência do domínio espanhol. É interessante observar como os mexicanos, pelo menos neste aspecto, são bem mais patrióticos que nós brasileiros. Quando eu era criança lá nas brenhas do sertão, eu marchava com a farda de gala do colégio pelas ruas da cidade, seguindo a marchinha da escola e a banda do batalhão militar. Depois disto, 07 de setembro tornou-se apenas mais um feriado para acordar tarde e descansar. Já no México, as fiestas pátrias são coisa séria. Os mexicanos enfeitam as ruas de vermelho, verde e branco, as cores do país, fazem comidas típicas para esta celebração e reunem-se para festas em casas de familiares e amigos. É um patriotismo que vai além dos desfiles militares que estamos acostumados no Brasil. Há um sentimento civil de patriotismo acima de tudo. Tive a chance de ver isto de perto durante uma viagem à Cidade do México há cerca de quatro anos. Aquela noite no distrito boêmio de Coyoacán, pertinho da casa de Frida Khalo e Diego Rivera, foi uma das mais inesquecíveis que já vivi. Não teve nenhum grande romance, nenhuma grande aventura hollywoodiana. Apenas uma brasileira de coração aberto comendo cactus com tubarão na varanda de um restaurante de culinária fusión moderninha, brindando com um cara que eu havia conhecido durante o vôo Rio-Cidade do México e que virou meu companheiro de viagem durante aquela semana. Fogos de artifício, barraquinhas de comidas típicas e super exóticas por todos os lados, dança, pimenta e leveza no ar eram o pano de fundo perfeito. Também observei semelhante comemoração no Chile há dois anos, por coincidência também em setembro, indo a suas fondas regadas a churrasco, empanadas, cerveja e vinhos, tanto em grandes espaços urbanos quanto nas casas de amigos. Deliciosa experiência, mas que me perdoem os chilenos patriotas: eles não chegam perto do tempero que o México tem. Deve ser o chilli azteca.

Laredo, Texas, tentou colocar tempero na sua festinha, mas a coisa ainda assim ficou meio morna, faltando faísca. De toda forma, foi prazeiroso ver aquela gente toda reunida no mormaço noturno na Plaza San Agustín, no centro histórico da cidade, celebrando sua herança histórica e cultural. A comemoração ocorreu um dia antes da celebração oficial. O motivo é simples: com Nuevo Laredo, México, a apenas um cruzar de rio, uma festa no dia 16 de setembro ficaria praticamente vazia.

A noite teve direito a danças típicas, geralmente belas moças sendo cortejadas por rapazes, tudo num estilo meio inocente e campestre; desfile de "rainhas" dos estados mexicanos (como eles adoram isto! Tem rainha pra tudo, igualzinho ao Brasil. Olha que eu já fui rainha do milho no século passado!);cantores com nomes como Danilo Daniel; grupos de mariachis; banda do batalhão de Nuevo Laredo; barraquinhas de tacos e jamaicas, um suco à base de hibisco. E belas pequenas cenas, como a menininha flamulando a bandeira mexicana duas vezes maior do que ela. Algumas mulheres e crianças vestiam roupas típicas, como aquelas belas batas de bordados coloridos que eu uso constantemente para ficar em casa. Havia um vendedor de bandeiras com a metade do rosto tapado por uma delas. Membros da Igreja Cristã Misericórdia aproveitando a aglomeração para entregar panfletos de "El infierno: la decisión es tuya". Um organizador de eventos distribuindo os panfletos do show da cantora pop Paulina Rubio com suas pernocas à mostra. Um padre tomando Coca-Cola em frente ao coreto.

Em meio a tanta informação, na minha cabeça ecoava o comentário que minha mãe fez outro dia quando falávamos sobre os vencedores e os vencidos da guerra entre Estados Unidos e México em meados do século XIX. Sim, os EUA venceram militarmente, levando o México a se render e a entregar alguns dos seus territórios, incluíndo o Texas. Mas e o legado cultural deixado pelos "vencidos?" A influência mexicana é muito forte na culinária, nas artes, na cultura, no idioma. Se olharmos por este aspecto, quem de fato é o grande vencedor? Senti uma certa ironia com aquela bem-vinda celebração da história mexicana em solo americano. E, em coro com o cônsul-geral do México que ostentava a bandeira de seu país na sacada do Hotel La Posada, logo após cantarem o hino nacional, também gritei: "Viva México!"