domingo, 30 de agosto de 2009

A chuva que não me molhou

Choveu nesta terra quente e eu não vi. A chuva correu de mim como eu agora corro das obrigações. Foi uma chuva torrencial de alguns minutos, eu soube. Eu estava fora da cidade e não ouvi, não senti, não me molhei. Uma chuva que me enganou: gordas nuvens dissimuladas, celulites de excesso d'água naquele céu de azul berrante que 24h antes não diziam nada que romperiam sobre o meu telhado. Trapaceira. A chuva que espero há dois meses para lavar minha cabeça, purificar meus sentidos, molhar as partes que querem se fazer áridas contra a minha vontade. Queria escutar o som de Laredo na chuva, inspirar o cheiro de Laredo na chuva, sentir o meu corpo em Laredo na chuva. Queria me batizar na chuva que carrega a água do já deplorável Rio Grande, pingos de contrabando centenário, gotas fortes de mexicanos em fuga, garoa de amores delimitados por uma fronteira de feridas abertas. Água doce, água salobra, que gosto tem esta água que cai do céu sem me avisar? Pergunte ao mato, pergunte ao vento, pergunte aos arbustos que esverdejaram quando entrei na cidade e o céu estava azul-fim-de-mundo, belo, sórdido e medonho, um azul sem piedade, e a terra cheirava finalmente a terra e o pó agora era finalmente lama. Pague agora, gota por gota: não te darei o gosto de derramar minhas lágrimas. Represarei minhas águas para o momento exato em que eu quiser exibir o quão caudalosa eu também posso ser.

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PS: Não faz duas horas que escrevi estas linhas acima. Consegui pirraçar a natureza: chove um Rio Grande volumoso sobre a minha cabeça. Laredo está em baixo d'água. Preciso sair e mergulhar um pouco.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Descongelando

Esta semana fará dois meses que aportei no hemisfério norte. Não chega a ser um marco para comemoração (apesar de crer veemente que basta ter vontade para abrir um espumante), porém na quarta-feira, dirigindo sozinha por uma larga avenida por onde eu jamais havia dirigido, senti primeiramente a deliciosa sensação de estar começando a me familiarizar com os meus entornos. Logo em seguida, algo maior que me fez sorrir enquanto aguardava o sinal abrir: a sensação de estar começando a descongelar, a vencer uma insegurança e resistência que se apoderavam de mim. O mais interessante é que foi necessário a chegada da minha mãe em temporada de férias para me dar conta disto. E para ajustar meu termostato. Estas mães que nos fazem nascer e renascer tantas vezes ao longo de uma vida.

Já morei em pequenas, médias e grandes cidades. Já me internei sozinha em hospital queimando de febre proveniente de infecção renal (e raiva, no nível emocional); cozinhei banquetes para mim mesma; viajei sozinha por montanhas nevadas; me embebedei até vomitar num bar de tango sem conhecer uma alma porteña; dei palestra em universidade americana para mais de 50 coronéis estrangeiros sobre "o papel da mulher na sociedade moderna"; rebolei o tchan umas quinhentas vezes; amei algumas; fui traída e chorei convulsivamente por meses; escalei um vulcão ativo; aprendi depois de um incêndio no meu apartamento que não levamos nada da vida a não ser memórias; cantei em banda de rock; tomei chá de rabo de cascavel; e pela terceira vez faço uma mudança para os Estados Unidos, lugar que já me acolheu por mais de seis anos no passado. Entre estas e outras, acumulei estoque mais do que suficiente para me virar sozinha, enfrentar a vida ou qualquer outro termo sinônimo. Ainda assim, confesso que travei assim que pus os pés em Laredo.

Medo de abrir as gavetas da minha nova casa. Medo de revirar as caixas empilhadas na garagem. Medo de andar pela grama verde e sempre úmida do jardim. Medo de pegar o carro. Medo de abrir algumas persianas. Medo de conhecer pessoas. Medo de embarangar. Medo de mudar o trajeto de casa ao supermercado. Medo de virar inútil e medíocre. Um medo que chegava mais ou menos da hora do jantar, se escondia temporariamente durante uma viagem de final de semana e reaparecia durante o banho. De repente, todas as barreiras e fronteiras já desbravadas pareciam placebo.

As razões eram óbvias e eu conseguia racionalizá-las. Cá estava eu começando algo completamente novo, um casamento de verdade, para valer, com direito a assinatura em cartório e o compromisso de formar família. Por mais liberal que seja a minha cabeça, havia toda uma instituição por trás da minha chegada a estas terras. Cá estava eu sem trabalho, com todo o tempo do mundo nas mãos -- o tempo que eu sempre quis, mas o que fazer com ele? Como aproveitá-lo para que não se perca em tardes vazias arrancando cutículas e enchendo a cabeça de gordas minhocas? Como otimizá-lo? Quais eram mesmo aqueles planos que eu tinha há anos e queria colocar em prática? Até muito pouco tempo atrás eu me jogava no burburinho carioca com vista para Copacabana, na correria da vida corporativa, nas festas repletas de pessoas interessantes, viajadas, globalizadas. Então caio neste lugar tão singular e tão árido de vida cosmopolita. Cá estava eu tendo que começar do zero, fazer amigos e me fazer ouvir.

W tem sido super amigo e companheiro, me incentivando a ser sempre a mulher "destemida" e curiosa que ele conheceu. Se a vida conseguiu me dar um pouquinho de sabedoria, uma delas é que não podemos e não devemos nunca jogar nossas amarras e frustrações no outro. As paranóias estavam na minha cabeça e era necessário agir. Já tive alguns momentos de paralisia na vida, portanto atualmente é mais fácil diagnosticá-los e tomar medidas profiláticas.

Primeira dose: numa quarta-feira qualquer no meio da tarde, abra uma garrafa de chardonnay e faça um brinde para lembrar-se que de tempos em tempos a vida pode ser vivida sem relógio e sem burocracias. É incrível a capacidade que temos de nos burocratizar mesmo quando em período sabático. Em seguida, mude os móveis de lugar. Mude novamente só para pirraçar seu próprio senso de organização. Compre para o banheiro de hospédes um sabonete líquido premium mesmo contra a vontade do seu cônjugue (e mesmo que o dinheiro seja dele). Também jogue fora aquele abajur de cetim cor-de-repolho hor-ro-roso que a ex dele deixou de lembrança. Catuque as caixas intocáveis e descubra lindos objetos de viagem que seu cônjugue nem se lembrava mais que existiam. Dê um jeito de, aos poucos, ir tirando da sala aqueles quadros que você jamais compraria, mas para não magoar seu querido, pregue-os num quarto que você quase nunca entra. E, finalmente, pegue o carro e comece a conduzir por ruas nunca antes navegadas. Perca-se. Deixem que buzinem atrás de você. Entendo: não existe receita de bolo para a vida, mas para mim funcionou.

E onde é que entra Dona B, a progenitora? Tirando o chardonnay, ela catalizou cada uma dessas ações. Queria arrumar a casa para tê-la aqui, recebê-la com um bom sabonete, comprar-lhe um hidratante de mãos para aliviar este ar tão ressacado. Em doses homeopáticas, fui também me reidratando de mim mesma, deixando escapar a essência que volta e meia quer escorrer pelo ralo. Até entrei em aula de violão pela primeira vez na vida. A casa que foi me dada de braços tão abertos foi ficando mais minha. As impressões digitais estão agora mais visíveis. Mas ainda há trabalho a ser feito.

Observar minha mãe também tem sido teurapêutico. Em menos de uma semana já havia revirado todas as caixas, todos os closets, aberto todas as portas, percorrido o jardim de cabo a rabo e colhido flores, fazendo delas belos arranjo para a sala (como eu não pude pensar nisto antes?). Entrou em aula de desenho, me deixou exausta caminhando no supermercado por três horas seguidas, abriu persianas que eu não ousava tocar, pediu para usarmos lâmpadas mais fortes nos quartos, questionou se o sol nasce mesmo no leste e se põe no oeste, mandou eu comprar meias novas para W, criticou a quantidade de tempero da minha comida, me fez ter mais simpatia pelas feiosas cadelinhas de pêlo áspero Sadie e Precious, as quais ela denominou carinhosamente de Arame e Araminho.

Estas mães que nos parem e que não nos deixam parar. Quando menos me dou conta, foram doses cavalares de curiosidade e ânimo. Um mergulho profundo nas minhas raízes mais embrionárias para não dizer o óbvio. Aguardando aquele sinal vermelho no cruzamento das avenidas McPherson com Lamar, abri um sorriso largo e aumentei o volume do rádio. Abaixei os vidros, me livrando do ar seco e gélido do ar-condicionado. Precisava de calor e de sauna. Meu termostato começava, finalmente, a voltar ao clima tropical.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Galeria 201



De longe o lugar mais aconchegante de Laredo, além da minha cama, é a Galeria 201. Encravada no início da Avenida San Bernardo, no centro histórico da cidade, abriga exposições e eventos culturais. Quem vê a galeria de fora não imagina o pequeno tesouro que se encontra além daquelas portas. Como quase tudo nesta cidade, tem um toque amador: quadros de artistas profissionais misturam-se a trabalhos de alunos de aula de desenho, a caixas de papelão esquecidas nos cantos e a até uma cama portátil encostada num corredor. A impressão é de que o lugar está sempre esperando uma arrumação que nunca chega. Mas é linda, charmosa e convida a sonhar.

A área de exposição das obras fica numa casa centenária. Pequena, talvez esta seja a primeira característica que lhe faz atraente. Casas pequenas geralmente têm alma grande. Casas grandes demais acabam se tornando impessoais e quase sempre desertos de ostentação. Grande parte do charme dessa casa provém de paredes que tiveram seu revestimento arrancado durante a renovação do lugar, deixando à mostra grossas colunas de pedras e tijolos que sustentam o prédio. Paredes desnudas, com entranhas tão expostas. Pedras de tom amarelado que emanam calor, como um amontoado de mulheres centenárias que souberam aproveitar bem a vida e hoje, banguelas, ainda cobrem-se de ouro e rendas, achando graça do tempo que lhes resta. O piso de tábuas de madeira corrida range ao menor caminhar. Uma voz rouca do tempo sob meus pés de novas eras. Sempre mudando de lugar, um recamier bordado de preto tem a medida das minhas ancas. Queria adormecer sobre sua manta já gasta e despertar nua numa tela de Rivera. Uma janela grande que nunca se abre traz iluminação natural através do vidro e veda qualquer sinal de vida racional. Ali dentro somos lúdicos, e que assim seja.

Aos fundos da galeria encontra-se um belíssimo pátio cercado de árvores, cactus, grandes vasos de cerâmica crua e obras de arte, como sereias fêmeas e machos penduradas nos galhos e esculturas de esqueletos observando a todos do telhado. Tem-se vontade de amanhecer ali, almoçar ali, jantar ali. Até mesmo morrer ali, rindo alto enquanto se come uma melancia no final da tarde.

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Tenho ido à Galeria 201 nestas manhãs de agosto, acompanhando minha mãe que está de férias e não hesitou em se matricular na aula de desenho em carvão com modelo vivo. O grupo é pequeno: o simpático professor mexicano Juan, três alunas e a modelo Chris. Jovem e muito branca, sua pele descasca por excesso de sol sem proteção. Cheia de pudores, não se despe completamente: desenlaça a parte superior do biquíni mas cobre os seios com as mãos. De costas para as alunas, tenta manter-se imóvel para que elas lhe retratem suas curvas e sombras. No dia seguinte, me confidencia sorrindo que está com os músculos doloridos de tanto ficar na mesma posição. O ambiente me inspira a fazer qualquer coisa, inclusive trabalho sério: num canto da casa, ligo meu notebook e dou andamento a uma pesquisa de mercado para uma empresa brasileira. Nada como dar uma pausa nestas condições. Não bastasse uma casa com alma, existe também a vibração leve e sedutora de arte em andamento.

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No momento a galeria abriga obras de arte da artista Kathy Sosa, texana de origem mexicana. Uma arte figurativa de cores fortes, repleta de elementos mexicanos retratando belas mulheres mestiças e indígenas. Não encontro originalidade nos quadros (ainda existe algo original em vigor nesta vida cercada de informação?), mas gosto do que vejo. Transmite festividade, luz, cor e faz bem às minhas retinas. Gostaria de ter US$ 3.000 disponíveis para arrematar o Our Lady of Grace, uma Nossa Senhora vestida de índia mexicana com um fundo ornado por diversas Virgens de Guadalupe. Artistas também precisam de capitalismo para sobreviver e continuar inspirando brasileiras tentando se encontrar nestas vastas fronteiras.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Lombriguices

Verdade que temos muitas fomes, outro nome para ambição. Mas falemos hoje de fome orgânica mesmo. Tudo isto porque a matéria de capa do último domingo do jornal local, o Laredo Morning Times, era sobre o fato do condado de Webb, o qual Laredo é a capital, ser o 5o no Texas com a maior taxa de obesidade. De certa forma, nada tão "anormal", considerando que no Brasil 20% dos homens e 1/3 das mulheres são obesos, segundo dados do IBGE. Mas a verdade é que o jornal comprova o que os olhos não mentem. É impossível não prestar atenção nos corpos mais que roliços desta região. E se eu não parar de devorar tacos, enchiladas, feijão refrito, costela de boi e manteiga de amendoim com mel, vou passar a fazer parte das estatísticas.

Não sei para você, mas para mim comer é prazer. Não é apenas saciar a fome e encher a barriga. Comer é permitir-se sentir a textura de cada alimento, experimentar a combinação de temperos, sentir o aroma que abre o paladar e faz salivar a boca. É a forma mais primitiva de masturbação. Não é à toa que comer é sinônimo pra fuque-fuque. São prazeres comparáveis e até compatíveis. Todo mundo já deve ter ouvido falar na tal pesquisa feita com mulheres americanas: "se você tivesse que escolher entre parar de fazer sexo e parar de comer chocolate, o que escolheria?." A mulherada escolheu o chocolate como o homem dos seus sonhos. Claro que isto nos leva a crer que as americanas precisam de mais terapia do que nós brasileiras, mas enfim, esta hipérbole exemplifica o fascínio de alguns de nós com comida.

Nos Estados Unidos a presença de comida é algo quase opressor. Comer, comer, comer é anunciado por todos os lados. As placas de restaurantes e cadeias de fast-food piscam incessantemente, 24h. Caminhar por um supermercado é uma experiência avassaladora, tamanha a quantidade e variedade de alimentos. Tudo em porções tamanho gigantes, com muito creme, muito molho, muito queijo, muito açúcar. Um copo de refresco em tamanho pequeno equivale a um tamanho grande na maioria dos estabelecimentos brasileiros. Em Laredo, a cozinha típica é tex-mex, uma mistura de comida texana com mexicana. Em outras palavras: muito feijão refrito (o nome já fala tudo), muita salsa, pimenta, mole (um molho para carnes que leva chocolate, amendoim e muito tempero) e muitas tortilhas para acompanhar os pratos. A expressão tortilla belly (barriga de tortilha) é bastante comum por aqui.

Sempre fui de bater um pratão de qualquer coisa. Nunca fui uma pessoa enjoada para comer, nem mesmo quando criança. Alface, tomate, macarrão, melado de tamarindo e picolé napolitano eram tudo a mesma coisa: comida. Já fui também o terror da vizinhança: quando eu almoçava na casa de minhas amigas de infância, as mães e pais se horrorizavam com o tamanho das minhas porções. Minha lombriga era faminta. Como já dizia o véi Janu, meu avô paterno baiano, "coma hoje porque amanhã pode não ter". Também sempre gostei de experimentar coisas exóticas: no México, pedi de aperitivo gusanos fritos, uma iguaria local: trata-se de um tipo de verme, o mesmo usado na tequila! E não é que depois de entupi-los com guacamole e pimenta brava não eram bem saborosos? Mas ainda não consigo encarar os pickles de pé de porco saboreados por aqui.

Aprendi a comer de forma saudável ao longo da vida. Morei em alojamento universitário com cozinha vegetariana, dividi apartamento com uma amiga carioca que adorava um mato (hoje ela inclusive germina seus grãos), me inspirei com amigos que sabem cozinhar delícias simples e saudáveis. Gosto de uma beringela, peixe fresco, pão integral, uma rúcula com molho de iorgurte. Mas confesso que de tempos e tempos eu enfio o pé na jaca, ou melhor, na gordura e no açúcar. E de com força. Que o diga minha amiga que me viu devorando um sanduíche de banha em Sevilha no ano passado. Então quando a fase junk chega, a comida vira meu canto de sereia e muitas vezes leva tempo para eu ter a disposição de me amarrar para não cair nas suas tentações. A balança já chegou no ponto onde sei que é necessário frear. Este sempre foi o meu truque: sou um baita dum ioiô, mas dentro de um limite de não mais de 5kg acima do meu ideal. Pena que depois dos 30 anos os 5kg a mais cheguem de forma pra lá de acelerada. Saudades daquele metabolismo feroz dos velhos tempos.

Minha mãe acaba de chegar para passar um mês de férias. Recém descobriu um diabetes e está cheia de restrições alimentares. É, mas tou achando que vou aproveitar sua chegada pra dar uma chafurdada numa geléia diet, um pudinzinho sem açúcar...Ah, estas sereiazinhas do século XXI.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

No exílio, proiba-se comparar

Quando você parte em exílio auto-permitido e auto-proclamado, não se pode comparar o destino para onde se vai com o porto que ficou para trás. Proiba-se. Se você se permitir, arrisca-se a não enxergar as belezas dos arredores presentes e cair na pieguice de um ser com saudadite aguda. Entrará em mode Gonçalves Dias, achando que as palmeiras daqui não são como as de lá. Não são, nunca serão e não devem ter a pretensão de ser.

Quando se sofre de saudadite, você entra em comparações baratas: "ah, aqui tenho que cobrir minha bunda com uma fralda de nadar; que saudades do meu biquininho tropicaliente". Esquece-se de que depois dos 30 anos e muitas colheres de sorvete mais tarde, é melhor mesmo ter um biquíni que lhe cubra as polpas. Não caia na tentação de dizer que lá você pode tomar cerveja no meio da rua, enquanto no lado de cá só em propriedade privada. Poliane-se: aqui as opções de cervejas são infinitas, ainda que não sejam tão estupidamente geladas. Lembre-se que os amigos de verdade são eternos e que qualquer amizade, ainda que passageira, deixa a lembrança de um encontro imortal. Nada morre enquanto as memórias ainda vivem.

Desprenda-se. Aprenda a fazer cupcakes -- nunca se sabe se um dia você precisará alimentar um exército de famintos. Deixe o cabelo crescer se ele ficou curto durante tanto tempo. Volte à era bush se se depilar a cada 20 dias ficou tão mais caro (hmmm, pensando bem, pule este opção e ache uma maneira de fazer dinheiro). Escute canções bregas cantadas em espanhol e aprenda rima a rima, letra a letra -- você pode ser a sensação do próximo karaokê quando voltar à civilização culta e antenada. Enfim, quando você se exilar, deixe encarnar nas suas tripas o espírito do lugar. Não exorcize-o: louve-o. Não se esqueça de onde veio, nem por que partiu, mas abrace o novo e recicle o velho. Mas não permita Deus que morra sem que volte, ao menos uma vez, para lá.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Os contrastes da estrada


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Na estrada, onde toda a vida pulsa mais intensamente porque tudo é novo mesmo quando tudo já começa a parecer familiar, observo a fronteira EUA-México nas quatro horas de viagem para um final de semana na praia em South Padre, Golfo do México. Notam-se grandes contrastes(ou seria um balanço?):
- verdes plantações de cebola;
- secas pastagens com placas de ranchos na porteira, muitos com esculturas em ferro representando a típica cena do velho oeste (cowboys, cactus e cavalos);
- perfuradeiras de petróleo martelando o solo na coleta do ouro negro;
- casas velhas e descuidadas, com junk (lixo) empilhado nos jardins;
- mansões construídas na beira da highway (por que alguém constrói uma casa, ainda mais um casarão, na beira de uma movimentada pista? seria um amante da estrada? talvez um exibicionista?);
- cidadezinhas empoeiradas com seus belos prédios históricos caindo aos pedaços, entregues às almas do século retrasado;
- novos bairros e suas incontáveis lojas de cadeias dos séculos XX e XXI tinindo seus letreiros que massificam todos os novos bairros de todas as cidades deste país, causando a estranha sensação de que por mais que se ande, nunca se consegue sair do lugar;
- comida, muita comida: desde cadeias de fast-food a birosquinhas de BBQ (barbecue, que não é o churrasco brasileiro como muitos pensam, e sim carnes defumadas, como costela e linguiça, num molho marrom adocicado), coloridas barraquinhas de tacos e tortillas, vendedores de melancias, melões, pêssegos e mangas perfumadas e suculentas;
- um homem com um copo enfiado no vazio do braço amputado pedindo esmola no cruzamento na subida de um viaduto;
- uma igreja das Testemunhas de Jeová;
- um estabelecimento de streap-tease chamado Xoticas (pronuncia-se "Exóticas");
- um outdoor com uma campanha sobre cordialidade e cidadania;
- uma placa nos arredores de uma cadeia alertando motoristas para não darem carona a ninguém, pois podem ser fugitivos.

Paramos para ir ao banheiro na bela e esquecida Rio Grande City, fundada em 1848 e que já foi uma das principais rotas de comércio entre os EUA e o México. Sua placa indica que há 11.923 habitantes. Não se arredonda nada por aqui e não faço idéia sobre quando foi a última atualização. Imagino uma cidade sem mortes nem nascimentos. Estável e permanente, sem curvas de declínio ou crescimento. A highway atravessa o centro histórico. É impossível ficar alheia àqueles prédios semi-abandonados com placas e sinais ainda em caligrafia antiga do início do século XX. Belas casas que pararam no tempo para contar uma história de gerações, mas que as novas gerações simplesmente ignoram. Consigo ver as sombras de mulheres de anquinhas e sombrinhas passeando com seus sapatos de cetim e suas luvas de rendas, acompanhadas por seus esposos trajando ternos bem-passados e olhando para seus relógios de bolso. Eu não sei nada sobre aquele lugar, mas posso sentir o cheiro de colônia de uma época que não vivi. As velhas paredes sussurram passado.

No meu primeiríssimo e novo Blackberry busco no Google mais informações sobre a cidade. Descubro que a ex-primeira dama Lady Bird Johnson ficou hospedada no hotel histórico para uma viagem com o propósito de conhecer melhor as flores selvagens da primavera. Gosto disto. É uma nobre razão para se viajar e emana contraste também: inocência e aristocracia. Do lado de fora do posto, um homem de meia-idade dorme de pernas cruzadas num banquinho à sombra, a aba dianteira do seu chapéu de cowboy a lhe cobrir seus olhos. Da estrada, três homens no banco da frente de uma caminhonete gritam gracinhas para mim. Confesso que me sinto lisonjeada. Quando se sai do Rio de Janeiro, a terra das ousadias, toda mulher acaba sentindo falta de um fiu-fiu. Entro no posto. Eu e W somos os únicos clientes. O banheiro está trancado e temos que pedir a chave ao atendente. Pergunto em inglês a razão disto, mas noto que ele não me entende bem. Mudo para espanhol e ele responde que é para evitar a delinquência, já que vários clientes depredam o banheiro. "Teve um que deixou merda no chão e eu que tive que limpar".

Paramos para almoçar na cidadezinha de Zapata, no restaurante Paraiso, cuja especialidade é chicken fried steak, ou seja, bife frito da mesma maneira que se frita galinha por aqui, com uma grossa e crocante camada empanada sobre a carne. É domingo, 13h30 e o lugar está vazio. Isto não me parece muito bom. W diz que é porque aos domingos as famílias fazem churrascos nos seus quintais. Peço uma porção pequena e por US$ 8,00 como um bifão com molho gravy, salada de alface e tomate, purê, 2 fatias de pão de forma, arroz e feijão refrito. A não ser que você seja uma cruza de cavalo com leão, jamais peça uma porção grande neste país. Depois de comer metade da minha refeição, meu estômago já não aguenta mais -- não apenas porque não há mais espaço, mas verdade seja dita, a comida do Paraiso é meio infernal. Aos poucos os clientes vão chegando. 90% são senhores e senhoras de cabecinha branca e chapéus de cowboy. Parecem já ter estado ali centenas de vezes nas últimas quatro décadas.

Voltamos para a estrada. Observo o vôo dos falcões enquanto escutamos velhas revolucionárias canções irlandesas. Ao entrar em Laredo, enxergo as duas grandes bandeiras mexicana e americana flamulando no calor tórrido da tarde. Há uma sensação de conforto e alívio ao se chegar em casa, mas imediatamente já começo a planejar a próxima viagem. Contrastes pessoais. Tudo é tão yin yang nas fronteiras da minha alma.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

"Piensa en mi, llora por mi..."

"Seu nome é Jenny e ela é morena, 1,65m, 50kg, longos cabelos negros, 24 anos de idade e tem como hobbies assistir televisão e ouvir música. Trabalha em uma maquiladora e quer conhecer homens com idades entre 24 e 25 anos que compartilhem os mesmos interesses. Novamente, Jenny tem 24 anos e quer muito conhecer você, portanto ligue agora para conhecer Jenny e desfrutar deste novo encontro".

Quarta-feira de uma bela lua cheia em Laredo. Nada de Facebook, My Space ou Match.com: na 100.5 FM, o correio sentimental não foi substituído pelas novas mídias. Pelo contrário, continua vivíssimo unindo solitários em busca do amor. A voz suave e sensual da DJ comunica em espanhol a lista dos anunciantes. Extensa lista de homens e mulheres românticos e apaixonantes, prontos para se apaixonarem. Jenny, a morena petite mexicana, espera em casa pela ligação daquele que pode ser o grande amor da sua vida. Homens de todo o sul do Texas e norte do México se alvoraçam para ligar o número anunciado pela rádio e entrar em contato com a versão radiofônica de Jenny.

A DJ toca a próxima canção. O Grupo Mojado entra com o mega hit sensação brasileiro dos anos 90 que soa ainda mais hit sensação quando hablado en español. É, o amor não tem idade nem fronteiras. A dor de corno também não.


Piensa En Mi - Grupo Mojado

Café, hookah, vinho e uma noite que flui



Neste meu primeiro mês de aniversário em Laredo City, descobri um dos lugares mais agradáveis da cidade: Cuadro Cafe. Décor super aconchegante, com mesinhas e mobiliário lounge cheios de almofadas, canecas de café com uma plantinha de bambu sobre as mesas, garrafas de vinho espalhadas por todos os lados, posters artísticos, quadros, fotografias, máscaras africanas e um palquinho com caixas de som, microfone e bateria pronto para receber uma banda. Fui pela primeira vez na tarde desta última terça-feira. Levei meu laptop, pedi um iced caramel mocha e passei a tarde inteira me deliciando naquele pedaço de cultura urbana tão nada a ver com a cidade.
Ah, nada como as ilhas! O lugar pertence a três jovens e simpáticos sócios na casa dos vinte anos. São eles quem tomam conta do lugar, fazem os cafés e servem os clientes. Fui praticamente a única cliente ali a tarde inteira. Confesso que esperava um público maior, até porque existe em Laredo uma universidade (Texas A&M International University) e uma faculdade. Pelo visto, contudo, não existe uma cultura de coffee shop. O que é uma pena. Alguns dos melhores momentos da minha vida foram regados a cafeína e vinho em cafés simpáticos nos meus anos universitários em Lawrence, Kansas.

Voltei ao Cuadro ontem à noite, para minha primeira girls' night out, ou seja, uma saída só com as meninas. Só as mulé! Já estava sentindo falta de estar num universo feminino. Além de agradabilíssimo, o local é BYOB, ou seja Bring Your Own Beer -- você pode levar qualquer bebida, em qualquer quantidade, e paga apenas US$ 5 pela consumação. Esta taxa ainda inclui o serviço de abrir suas garrafas, taças e gelo. E não é só isto: em agosto, quem levar sua própria bebida ganha uma rodada de hookah, aquele cachimbo à base d'água muito usado nos países árabes. Em outras palavras: perfeito.

Fui com Fabi e sua amiga Laurie, quem conheci ontem à noite. Ambas são advogadas e trabalham numa ONG que oferece serviços jurídicos para quem não tem condições de pagá-los. Fabi é local da cidade e a conheci através de W. Eles, por sua vez, se conheceram durante os trabalhos voluntários da campanha de Obama. Fabi acaba de voltar a Laredo após ter morado em Austin, Texas, por oito anos. Para mim, é bom vê-la se readaptando à sua cidade natal (lembrando que tudo é válido como fonte de inspiração). Ela reconhece as deficiências locais, mas parece estar feliz. Muito inteligente e extrovertida, tomei uma simpatia rápida por esta jovem de olhos grandes e lindo cabelão encaracolado. Laurie é californiana e mora aqui há dois anos. Muito simpática, parece uma estátua de marfim de tão branquinha e delicada. Quando perguntei o que ela achava da cidade, sua resposta foi hesitante: "bom, estou me adaptando". Ri e disse "isto significa que você está odiando." Gargalhadas compartilhadas a três.


E assim a noite foi fluindo, entre vinhos, tragadas de hookah com sabor de maçã e mel, velhas canções de James Taylor na voz e violão de dois filipinos que cantavam como anjos (que vozes, que vozes!), algumas confidências e muitas risadas. Tudo muito leve, como a doce embriaguez do meu vinho espanhol de La Rioja (propositalmente escolhido na minha ida ao supermercado: eu precisava de umas forças flamencas para levantar meu ânimo que estava meio enviezado nos últimos dias). Ao redor, mesas vazias. Apenas um grupo de filipinos amigos dos músicos, um outro grupo de três pessoas e dois casais que foram embora pouco depois de chegarmos. No big deal. Às vezes não precisamos de nada mais além de um coração cheio, um peito aberto e boas gargalhadas para curar qualquer aproximação de tédio. E vivam as ressacas das quintas-feiras!

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Os pássaros

Existe um quintal verdejante em Laredo onde pássaros do tamanho de galinhas atacam diariamente, vorazmente, ferozmente, a bacia de ração de duas feias cadelinhas por quem meu coração começa a amolecer. Dos galhos da bela árvore que sombreia os fundos deste quintal, a gang espera a chegada da manhã, quando a comida de Sadie e sua ciumenta e enlouquecida filha Precious é reposta. Existe uma silenciosa conspiração em andamento sobre aquela fresca grama.

O líder do bando é um corvo invocado de bico sempre aberto. Chega saltitante, peito para o alto, muito macho no seu papel de corvo líder. Seu olhar tem a adrenalina do proibido, o regogizo do sucesso clandestino. Mas também a "medonha dor de um demônio que sonha", como diria Poe. Toma o primeiro pedaço de ração e, assim, dá sinal verde para o resto da horda fazer seu arrastão diário. Em poucos segundos, a grama é ocultada por outros destemidos corvos, gordas pombas acinzentadas e plutônicos pardais. As desgrenhadas cadelinhas, do tamanho dos seus algozes, refugiam-se nos fundos da casa, na sombra do muro. Pra que lutar, se não temos asas? Pra que latir se em breve nossos humanos nos alimentarão novamente com sacos de 10kg de comida? Comam, sirvam-se. Há abundância para todos na América.

Uma conspiração no fundo do quintal. A submissão à raça humana é apenas um disfarce bem planejado. As cadelinhas ensaiam seu latido de liberdade. É necessário haver algum tipo de justiça na fronteira. As asas precisam de força para voar. A revolução começa nas garagens e nos quintais frondosos. No prato de ração. Por um prato de ração. O corvo líder, já destemido com minha presença, gralha "fome, nunca mais."