domingo, 29 de novembro de 2009

As viradas do tempo

Há um tanto de ironia nestas viradas de tempo. Vai-se embora o calor de um verão impiedoso na recepção que me derretia por dentro enquanto eu tentava compreender tantas mudanças numa só vida. Chega, por fim, uma brisa fria para a cobrir a noite destas planícies texanas, mas continuo a botar lenha no meu coração. O inverno iminente igualmente traz previsões acaloradas. Em dois meses ou menos deixarei Laredo rumo à cosmopolitanidade de Houston e às milhares de urbanas oportunidades. São tantos processos: vender a casa, organizar bazar para se livrar dos descartáveis que o marido acumulou com o tempo, procurar uma nova casa na cidade que não se conhece e entender as pequenas grandes contradições inerentes à vida. Como a de se despedir tentando se enraigar. O adeus traz sempre consigo a possibilidade do nunca mais, portanto é preciso viver para se lembrar daquilo que nunca mais será. É preciso conhecer as pessoas que você nunca mais verá, é preciso rir com elas, dançar com elas, brindar com elas, comungar das suas alegrias e oferecer ambos os ombros para seus lamentos. As pessoas que chegam até você quando você não as procura. Ao menos conscientemente. No querer-ir há sempre um querer-ficar, mesmo quando a escolha é clara. Porque ali fomos nós um dia e agora somos outra coisa em movimento. Olho para frente. Daqui a dois meses ou menos tudo muda. Nova casa, nova cidade, novos amigos, novo emprego. Tudo ainda a se procurar, não há nada certo além da certeza de que estarei lá. Tudo de novo outra vez. Aprende-se a dominar a saudade. Escolhi viver todas as estações. Dormirei pensando em primaveras.

sábado, 21 de novembro de 2009

Mulheres unidas jamais serão vencidas

Para me tirar do tédio da vasta agenda social deste momento doméstico da minha vida (preparar o almoço diariamente, ir à aula de violão onde descubro que tenho talento zero, brincar com a gatinha que apareceu no jardim há cerca de três semanas, lavar a louça que não se cansa de sujar, trocar a comida das cadelinhas, ir a hidroginástica, retocar a pintura do cabelo em casa e fazer compras no supermercado), esta semana uma amiga advogada me convidou para ir a um evento da Laredo Women's Bar Association, ou Associação das Advogadas de Laredo (não, não é associação das mulheres dos bares, mas se fosse eu iria con mucho gusto). Apesar de eu não ser advogada, e mesmo temendo que fosse ser algo extremamente enfadonho, não recusei nem que me oferecessem um lavada completa de louça do almoço do dia seguinte. Ainda por cima, o evento era na Galeria 201, um dos meus lugares preferidos de Laredo, e tinha degustação de vinhos (ver post prévio sobre a Galeria aqui neste blog). Juntou a fome com a inanição, portanto não tinha como eu negar minha presença. Ainda bem que eu fui, pois a noite acabou se transformando num palco para uma reflexão sobre a força da união feminina.

A razão principal do evento era a arrecadação de fundos para uma organização que cuida de crianças em espera de adoção porque a justiça as afastou de seus pais devido a abuso e/ou negligência destes. Americanos adoram eventos para arrecadar dinheiro -- e sabem fazer isto muito bem, por sinal. Por valores que variavam de US$ 10-30, comprava-se uma rifa para o sorteio de até quatro lindas bolsas -- quase todas beeeem peruais, mas lindas -- da renomada designer americana Melie Blanco, que por sinal é irmã de uma das advogadas. Prêmio totalmente condizente com o público-alvo. Óbvio que apesar de eu ser uma semi-perua (aquela que adora um acessório e maquiagem, mas sabe ser discreta no uso), sucumbi e comprei minha rifa.

Enquanto as doações iam sendo arrecadadas, enchíamos pratinhos com aperitivos e copinhos plásticos com vinhos diversos -- o que aconteceu com vidro, oh my God? Uma elegante convidada enóloga, responsável pelo departamento de vinhos dos Supermercados HEB, nos dava uma pequena aula sobre como degustar a bebida além de dicas importantes: "se você for convidada para um jantar e não souber qual será a comida servida, leve um Pinot Noir." A platéia de aproximadamente 40 mulheres foi bastante participativa. Quase todas estávamos sentadas à uma grande mesa no meio do salão principal da pequena galeria de paredes centenárias e quadros coloridos de artistas locais. Um cantor com seu infalível órgão cantava músicas derramadamente românticas em espanhol. A advogada que estava ao meu lado me confidenciou o quanto amava este tipo de música. As mulheres conversavam, riam e interagiam. Várias vieram se apresentar para mim. "Oi, meu nome é Fulana de Tal, sou advogada particular/promotora federal/advogada criminalista". No que eu respondia: "oi, sou Desbra Vando, convidada de Fabiola Flores". Fabi, então, adicionava mais um capítulo à minha apresentação: "ela é a esposa de WB". E ali estava eu, sendo não mais eu, mas a esposa de alguém, em meio a um grupo de profissionais. Vez por outra uma se aproximava e fazia algum comentário: "você é brasileira, certo? uau, o que acha de Laredo?", ou "gosto muito do seu marido, diga 'oi' para ele por mim". O que mais que chamou atenção foi que naquele evento, na minha função de convidada de alguém, apresentada como a esposa de alguém mais, eu não me senti em nenhum momento como peixe fora d'água.

Havia um sentimento de união naquele grupo. Mulheres seguras de si, mulheres elegantes sem afetação, mulheres interessadas umas nas outras. Mulheres que sabiam ser profissionais e sabiam ser mulheres também, em todo o sentido mais feminino da palavra: comentavam como a roupa da outra estava bonita, como a torta de banana com doce de leite estava saborosa, suspiravam ao dizer o quanto gostavam da música romântica, aplaudiam com vibração quando a diretoria da Associação foi apresentada. Mulheres que se emocionavam ao colocar suas vidas pessoais em pauta para vender a idéia de ajudar a associação que cuida de crianças, como a juíza que perdeu uma gravidez há alguns meses e que pegou o microfone para contar que está em processo de adotar um filho. Mulheres que, como mulheres, também adoram dar umas alfinetadas nos homens: três delas comentavam como o juiz Fulano de Tal e o promotor Sicrano de Val não liam os novos códigos de leis e estavam totalmente defasados nas novas legislações. Todas diziam que em geral as mulheres rapidamente aprendiam as novas leis, enquanto que os homens eram mais passivos. Mulheres seguras de si e de suas convicções. Mulheres que sabem delegar e dividir os louros do sucesso com o grupo do qual fazem parte. Mulheres que não precisam provar nada para ninguém, apenas para si mesmas. Aquelas mulheres de quarta-feira à noite em Laredo pareciam felizes por estar ali, em poder trabalhar e interagir umas com as outras.

Foi inevitával não relacionar aquele evento com o contato retomado com uma amiga de colégio primário, que continua tão bonita quanto como eu me lembro dela na primeira série. Ela me escreveu coisas lindas e me falou que gostava de poesia. Eu a incentivei a criar o seu blog de poemas, pois percebi na maneira que ela me escrevia em prosa que era talentosa. Ela me respondeu que a princípio ficou com receio de criar um blog e eu achar que ela estava me invejando, já que eu tenho o meu, mas logo viu que isto era tolice, coisa de quem mora em cidade pequena e já é "gato escaldado" em inveja de interior. Óbvio que eu achei que não havia nada de invejoso nisto, e que bom que ela também, pois logo em seguida criou seu blog. Juntando este acontecimento com o evento em Laredo, pensei: somos mulheres e temos que nos unir. Sempre. Temos que nos ajudar, nos incentivar, nos motivar, sermos modelos umas para as outras. Temos que saber ser mulheres, sendo mulheres -- que falam, que riem, que se emocionam e que sabem ser firmes também. Parafraseando Che, endurecer mas sem perder a doçura. E se a inveja surgir, porque inveja é coisa de humano -- eu sinto, tu sentes, ela sente, ele sente, nós sentimos -- que esta inveja seja direcionada para superar nossas limitações, nossas tristezas e mágoas. Se eu não tivesse sentido inveja em alguns momentos da minha vida, não teria andado para frente. Gerações passadas já conseguiram tantos avanços na luta da emancipação feminina; gerações presentes seguem lutando; mas este ainda é um mundo masculino na sua maior parte, mesmo aqui na superpotência americana. O comportamento feminino é julgado tendo como base o comportamento masculino, sobretudo no âmbito profissional: em público não podemos chorar, não podemos falar alto, não podemos abrir o coração, não podemos imitar algo que nos agrada. São gestos e atitudes vistos como fracos, pois sabemos que historicamente estão associados ao comportamento feminino. Mas o bom é que a Terra gira todos os dias e nós mudamos também. Que bom que as mulheres vão se fazendo cada vez mais vozes fortes no mundo, usando o que lhes é mais feminino a seu favor. Portanto mulheres, sejam amigas, inspirem e deixem-se inspirar.

Aquela noite eu não ganhei uma bolsa bonita na rifa, mas ganhei uma lufada de ar fresco cor-de-rosa-choque.

domingo, 15 de novembro de 2009

La vida guacamole

Fez um domingo quente. Um domingo quente de guacamole. Domingo verde-abacate pra recomeçar novinha e esquecer que em uma semana a gente pode amadurecer até passar do ponto. Abacate com sal, azeite e limão pra lembrar que é bom ser azeda.

Fez um sol de rachar lábios e pingar suor grosso. Cada poro do tamanho de uma América Latina num coração balançando ao atlas musical que tocou Grécia e Portugal, tocou Espanha e as Arábias. Me tocou orelhas, pés, pescoço e uma coluna biônica eternamente em recuperação que sacudia tudo. O corpo subiu no sofá, ignorou o cheiro de mijo de gato que o tira-odores superpower não tirou e dançou sem parar até a exaustão, caindo em gargalhadas, lambido pelas cadelas roucas de tanto latir com a louca do sofá que gargalhava e rodopiava sozinha. Não ficou nenhuma costela no lugar, foi tudo defumado em suor. Este corpo que se recusou a tomar banho por horas depois do suadouro daria uma suculenta feijoada.

A perda de auto-controle é tão libertadora.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Das coisas enterradas no jardim

O ser humano não é apenas matéria, é também espírito. Ou assim tentamos crer. Entendemos os eclipses, a virada das marés, o conceito de Big Bang, a evolução de primatas a homo sapiens a homo informaciones nesta época de blogs, Twitter e Facebook. Entendemos que somos carne, mas prosseguimos na busca do entendimento do que há por trás dela, ou dentro dela ou além dela. Tem algo a mais além de átomos e células e mitocôndrias que dá a ignição para nos mantermos alertas e que nos faz seres conscientes da própria consciência. Chame de Deus, de Deusa, de Força Universal. Viver a vida racionalmente é um caminho, mas viver com elementos de misticismo e fé atrelados, certamente faz desta uma jornada mais rica. E como pode ser mística a vida aqui na fronteira! Há três semanas um causo curioso me ocorreu fazendo reativar minha dormente fé. Um causo que envolve caveira de porco, chifres de veado, vela de pimenta forte, ovos de galinha de capoeira, um bruxo travesti e um santo enterrado no jardim de casa. Eu, que vivo na fronteira entre o crer e o não crer, sempre pendendo para a primeira alternativa, por via das dúvidas saí em busca de auxílio para reverter um feitiço que havia sido lançado contra meu matrimônio.

Há um jardim plantado na frente de casa. Arbustos verdes bem cortados com pequenas flores roxas que proliferam no verão. Nunca fui de saber o nome das flores, mas sempre soube apreciá-las. No princípio do outono plantamos uma roseira que aos poucos está vingando. Naquela tarde de outubro, três dias após o meu casamento, descobrimos que haviam plantado à nossa revelia algo um pouco mais medonho: uma caveira de porco selvagem e três chifres de veado. Tudo enfiado num balde semi-enterrado no canteiro e que com certeza absoluta não estava lá pelo menos duas semanas antes. Minha mãe descobriu a "encomenda" por acaso enquanto esmiuçava o jardim. Achou a caveira perturbadora, mas os chifres tão lindos que chegou a limpá-los para decorarem a casa. W. pediu para não mexermos em nada, e temendo que pudesse ser algum tipo de ameaça, chamou amigos policiais para investigarem. A investigação não chegou a conclusão alguma, mas eu não tive dúvidas: é despacho, mandinga, macumba e é coisa de mulher!

As expressões "corno", "chifrar" ou "cornear alguém" não fazem o menor sentido para o americano comum, mas no México carregam o mesmo significado que para nós brasileiros. Conversando com locais mexicanos e descendentes descobrimos que eu não estava enganada: era feitiço e tinha a intenção de separar o casal através de infidelidade, representada pelos três chifres. E para trazer ainda mais dramaticidade à esta insólita história, ainda havia uma conexão satânica, simbolizada pela caveira de porco. Valei-me, meu Oxóssi!

Jamais imaginei que quando saí do Brasil para vir ao Texas eu fosse ter contato com este tipo de misticismo. Eu sempre fui muito medrosa em relação a espíritos, demônios, capetas e etc, certamente influência da educação em colégio católico que deixou alguns traumas na minha psique. Como eu morava perto de uma encruzilhada, de vez em quando apareciam umas galinhas pretas com farofa na esquina. Eu morria de pavor e passava longe. Quando morei em Iowa e no Kansas há mais de uma década, raramente meus medievais medos passavam pela cabeça, pois tudo lá era tão material. Por mais que vez por outra eu fosse à igreja (como parte de uma aventura cultural e sempre acompanhando alguém), a vida naquelas terras transpirava a matéria pura e simplesmente. A própria natureza dos cultos protestantes que eu atendia, exceto os da Igreja Batista, não dava tanta margem ao misticismo quanto as missas católicas. Meu medo naqueles tempos era de solidão, algo que já não sinto mais (a vida me ensinou que sozinhos sempre fomos e sempre seremos, mas que ser solitário ou não cabe a cada um). Mais tarde na vida entendi melhor as manifestações religiosas e passei a respeitar as oferendas. No Rio de Janeiro eu sempre pedia licença quando topava com uma -- e se você fizer uma trilha pela Floresta da Tijuca, encontrará várias. Mas diferentemente do meio-oeste americano, aqui nesta fronteira de Estados Unidos e México matéria e espírito se entrelaçam. O catolicismo é fervoroso, ainda que todos pratiquem os habituais pecados, e os elementos de sincretismo religioso são fortes e visíveis, como o culto de adoração à Santa Morte, que merece um texto só para ela. Vísivel também, como acabei de conhecer, é mandinga das bravas. Não cheguei a sentir medo do despacho no meu jardim. Senti mais foi indignação em saber que alguma alma-viva sebosa se deu ao trabalho de catar aqueles ossos e despejar negatividade para minha família.

Como não posso sair do país até meu greencard chegar, minha amiga M., a quem relatei a história, tomou o assunto com urgência e tratou de levar minha mãe a uma hierbería (casa de artigos religiosos e de santería) em Nuevo Laredo, México. M. é mexicana e conhecedora da alma deste lugar, com PhD da vida em homens inescrupulosos, inveja feminina, feitiçarias e mandingagens. Afirma que era uma pessoa descrente até quando passaram a lançar despachos contra ela e sua casa foi tomada por demônios que infernizaram sua vida e a dos seus filhos, arranhando as paredes, batendo portas e fazendo toda sorte de demonices. Desde então, M. nunca deixou de tomar todas as precauções possíveis para se defender da negatividade alheia, como andar com santinhos na bolsa, no carro e rezar muito. Naquela noite, M. e minha mãe voltaram do México com um pequeno arsenal de proteção contra o mundo dos espíritos ruins: três velas regressoras de feitiço (instrução: acender de cabeça para baixo e em seguida colocá-las no chão formando um triângulo; dentro dele eu deveria escrever o meu nome e o do meu marido); uma vela para o anjo da guarda (instrução: enfiar na cera papeizinhos com os nomes das pessoas por quem peço proteção, com o cuidado de acendar a vela de cabeça para baixo); uma vela de chili (pimenta forte) para levar embora a inveja e o olho grande (instrução: enfiar na cera papeizinhos com os nomes das pessoas que possivelmente poderiam sentir inveja minha e do meu marido, com o mesmo cuidado de acender a vela de cabeça para baixo); um incenso para limpar o ambiente; e dois ovos de galinha de capoeira que fariam parte de uma sessão de desfaz-feitiço organizada por uma senhorinha do lado de cá da fronteira.

Como a tal senhorinha desmarcou de última hora a nossa pajelança, M. nos levou para uma consulta com Luis, que atende numa hierberia no lado sul de Laredo, Estados Unidos, área notadamente mais pobre e com estigma de gueto. Era uma loja semelhante às de artigos para candomblé e umbanda comuns no Brasil, exceto que em vez de imagens de Iemanjás e São Jorges proliferavam imagens da Santa Muerte. Não me prolongarei sobre este fascinante culto, mas posso dizer que depois daquele dia a Morte representada por aquela cadavérica senhora vestida de preto deixou de ser algo amedrontador. Mas até eu conhecer os fatos sobre a Senhora-do-Além, sentia um desconforto seguido de frio na base da espinha naquele lugar repleto de imagens, fumaça de incenso, cheiro de velas queimando e oferendas de maçãs, tequila e flores.

Luis chegou e se dirigiu a uma salinha onde fazia suas consultas de tarô em frente a um altar repleto de oferendas e velas para uma Santa Muerte do meu tamanho. Luis tinha uma cara enorme com uma papada sobressaltante, cabelo castanho-acaju com cachos duros de laquê descendo até os ombros, olhos pequeninos pintados com sombra escura e várias camadas de rímel. Vestia saia curta e uma camiseta colada no corpo grande e inchado, deixando aparecer o decote nos pequenos seios. Sua pele marrom-escura estava coberta por vários colares, pulseiras e anéis de ouro. Se apresentou como Fer, seu alter-ego travestido, e exibia um ar de mistério e sedução. Fui direto ao ponto e expliquei a razão da minha presença. Ao mostrar a foto da caveira com os chifres, Luis/Fer começou a indagar sobre o passado amoroso do meu marido até apontar precisamente que foi uma ex quem preparou o despacho, dando praticamente nome aos bois. "Não porque ela seja apaixonada por ele, mas ela não quer vê-lo feliz." A mesma ex que meu marido, embora incrédulo, disse dias antes ser a única pessoa que poderia se dar ao trabalho de fazer, bem, um trabalho. Luis/Fer garantiu que tudo ficaria bem, mas que para quebrar o despacho eu deveria acender uma vela de 7 dias com aroma de maçã e limpar a casa com a Água Espiritual 7 Potências.

Logo após a consulta, minha casa estava repleta de velas e devidamente higienizada com a água bentificada. Não me dei ao trabalho de enfiar papeizinhos na cera e acabei fritando uma boa omelete com os ovos de galinha de capoeira. Mas até meu marido W., que é extremamente cético a ponto de rir de tudo o que eu estava fazendo, passou a usar um escapulário que minha tia havia lhe presenteado. Nestes mesmos dias havíamos ganhado de presente de casamento uma imagem de São José. Segundo o costume local, caso você queira vender sua casa, algo que estamos tentando há quase um mês, deve-se enterrar o santo de cabeça para baixo no seu jardim. Quando o milagre for atendido, o santinho deve ocupar lugar de destaque na nova residência. O enterro (tortura?) do São José teve, assim, duplo significado: funções imobiliárias e protetoras de possíveis futuros despachos. Em tempo: por que tanta fissura com coisas enterradas por aqui?

Expliquei ao meu pai todos os pormenores da história e perguntei o que ele teria feito no meu lugar. Do alto da sua sabedoria e praticidade, o homem não hesitou: "sentava no lugar onde acharam a macumba e cagava em cima." Acho que realmente uma boa cagada depois de um almoço regado a brócolis e repolho daria conta: reverter mandinga com catinga. Mas eu não conseguiria ir por um caminho tão racional. Se no reveillon na praia peço luz e proteção com velas acesas e flores ao mar, por que não acrescentar um pouco de firula mística a um episódio enraigado numa crença popular? Depois de tanta vela acesa creio que não sobra mais nem pó das intenções maléficas dirigidas ao meu lar. Mas não custa nada passar um sal grosso no corpo e fazer umas orações vez por outra. No fim das contas, bem ao meu estilo Poliana de ser, até agradeço à mandingueira de plantão por não apenas ajudar a reacender a minha fé, como também a me fazer vivenciar a deliciosa experiência cultural do submundo espiritual da fronteira.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Política de chapinha

Certas realidades são tão bizarras que parecem causos saídos de crenças populares. Alguns tão fantásticos que nem novelas de Gloria Perez conseguiriam tamanha inventividade. Aqui nos Estados Unidos, o Texas certamente é um celeiro de realidades fantásticas. A última delas é de um dos candidatos a governador pelo partido democrata.

Farouk Shami é palestino naturalizado americano que imigrou para os Estados Unidos na década de 1960. Personificação do sonho americano, chegou neste país com apenas US$75 e fez uma fortuna bilionária no ramo de beleza. Sua grande invenção foi a primeira coloração para cabelos sem amônia (ah, sim, nós gostamos disto). Suas três marcas de produtos para cabelos e pele, BioSilk, Sunglitz e CHI, são exportadas para 50 países. Sua plataforma política é trazer "milhares de empregos para o Texas". Desta forma, chegou a fechar uma fábrica na China e está abrindo outra em Houston.

Tive a oportunidade de vê-lo pessoalmente ontem à noite durante um evento político. Na verdade eu havia ido ao evento da candidata Sylvia Palumbo a tesoureira do condado de Webb, que tem Laredo como sede. Confesso que não fui por vontade própria, mas como esposa-acompanhante de W., que apóia sua candidatura. Ao final do evento vi dezenas de mulheres do lado de fora carregando bolsas com produtos de beleza. Uma delas soltou para mim: "vai lá pegar uma pra você também." Eu, com minha fraqueza por shampoos, não resisti.

Descobri, assim, que Mr. Shami estava na sala adjacente, num ambiente que contrastava berrantemente do solene e tradicional evento de Mrs. Palumbo. Ali ao lado, nada de luz branca incadescente, almôndegas nem palitos de aipo e cenoura em estilo self-service. A festa de Farouk estava iluminada com jatos de luz estroboscópica; a música era de boate, inclusive tocava uma canção brasileira animadíssima que eu nunca havia ouvido antes; os aperitivos incluíam mexilhões gratinados servidos individualmente em pratinhos por vários garçons; e um locutor anunciava sem parar: "Aguardem, aguardem! Daqui a pouco sortearemos as chapinhas CHI, alta tecnologia para seus cabelos!" No centro da sala lotada, 90% por mulheres, estava o senhor Farouk Shami, pequenino, pele esticada, abraçado a várias louras oxigenadas pelo menos dois palmos mais altas que ele, exibindo orgulhosas seus cabelos lisíssimos. Ele sorria ainda mais orgulhoso que elas, tocando e cheirando seus cabelos num momento Hug Hefner de ser, enquanto os flashes não paravam de brilhar. Apesar de achar tudo aquilo deliciosamente bizarro, entrei na fila para pegar meu kit CHI com shampoo, condicionador, spray de brilho e um panfleto de "Farouk Shami para Governador do Texas 2010". Abracei meu ondulado e deixei a chapinha pra outro dia. Saí dali pensando: isto sim é que é comício!

Política, shampoo e chapinha: genial! Este homem realmente é um bravo: não apenas é nascido na Palestina, como também tem nome árabe (pelo menos Barack Housseim Obama já abriu o caminho) e quer concorrer a governador pelo partido Democrata em um dos estados mais conservadores dos Estados Unidos, distribuindo ao Texas cabelos mais belos e lisos. Nem Odorico Paraguaçú seria tão criativo. Como as fotos mostram, para sua campanha ele deu uma turbinada no visual. Nada de bolsinha sob os olhos: bolsinhas agora, só com shampoo dentro.

E quem disse que o Brasil é o país da piada pronta? Vem para o Texas você também, vem!