sexta-feira, 30 de abril de 2010

A debutante e a noiva

Há um conjunto de três fontes no bairro de Montrose em Houston que me faz lembrar um trio de pudim, manjar e quindin. Água que flui com uma leve lembrança visual e degustativa de recordações infantis. Fazia um friozinho de arrepiar os pêlos do antebraço naquele final de tarde de março, mas as moças que visitavam as fontes para eternizar momentos em incontáveis fotografias digitais faziam questão de deixar os ombros desnudos apesar da opulência dos seus vestidos-fantasia. Ombros delicados, como delicados são os ritos de passagem. Num lado da rua, uma debutante quinceañera. Do outro, uma noiva. Ambas em seu dia de glória, ambas inundadas em fontes e sonhos e suspiros.

A debutante de vestido azul-quase-neon era o retrato fiel de uma princesa Disney em versão latina. Um vestido de gosto duvidoso para padrões alta-costura, mas que lhe caía bem. A menina que cresceu com Internet, celular e acesso a tantos estilos mas que ainda preferia tradição. Eram tantos os arames das suas anquinhas que ela mal conseguia se sentar sobre a grama do parque. Eram tantos os falso-brilhantes do seu vestido que eles desputavam a atenção dos transeuntes com a luz dourada daquele final de tarde. Mas a quinceañera era de fato encantadora, feminina, delicada nos gestos e reinava confortável no seu lado da rua entre os flashes fotográficos e os olhares que recebia. Sabia sorrir para a câmera em posada naturalidade. Duas mulheres a acompanhavam o tempo inteiro enquanto cobriam-lhe de fotografias. Uma delas, possivelmente sua mãe, sua versão caseira de fada-madrinha. Seu príncipe, se é que ele existia, cavalgava em outros reinos.

A poucos metros a noiva levantava o vestido branco e exibia as suas também muito brancas pernas até o joelho. A longa cauda do traje arrastava a réstia de luz do pôr-do-sol e as lembranças da cerimônia de seu casamento que deveria ter ocorrido aquela tarde. Já não havia mais buquê em suas mãos – àquela altura, ele já pertencia a outra dona que ainda aguardava seu rito de passagem. Agora era chegada a hora de se entregar para a brisa levemente gelada, de manchar o vestido de terra, de descalçar os sapatos vermelhos e enfiar o pé na grama macia. Era hora de se deixar abraçar pelo seu homem que a rodopiava pelos ares enquanto os flashes do fotógrafo contratado eternizavam cada segundo de movimento e os carros que faziam o contorno das fontes-pudim buzinavam em celebração.

Eram duas moças-borboletas batendo suas asas na tarde de sábado. A vida é repleta de momentos-casulo. Uma menininha que virou mocinha. Uma mocinha que virou mulher. O que a vida lhes ensinou sobre a condição feminina era impossível de ser desvendado. Sabe-se apenas que elas oficializavam seu novo status junto a suas famílias, seus amigos e sua comunidade. Velhos hábitos ficaram para trás. Uma delas possivelmente já assinava um novo nome. Era a hora de novos rituais.

Houve um momento de encontro. Caminhando em direções opostas, a quinceañera e a noiva cruzaram-se. Prestaram atenção numa mulher que tomava nota daquele momento em seu Moleskine e num mendigo de jaqueta de couro e adereços punk que se deixava notar. Entreolharam-se, sorriram e parabenizaram-se em pouco menos de três segundos. Cada uma seguiu para seu reino, soberanas princesas texanas de uma babilônica cidade.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Aportando em Houston

Cheguei em Houston numa sexta-feira de um inverno frio e úmido. Dirigia um carro com uma gata em pânico que havia se cagado por inteira na gaiolinha no banco dianteiro, uma cachorrinha surpreendentemente comportada no banco traseiro, um porta-malas cheio de mudanças e um arrepio na boca do estômago inerente a quem está adentrando mais uma etapa de vida. Num intervalo de menos de um ano começava-se mais um capítulo de tudo novo novamente. Já deveria estar acostumada e tranquila, marinheira de longas estradas, mas há sempre um misto de animação, ansiedade, euforia e pânico nas beiradas do incerto. Na minha frente, meu marido pilotava o caminhão da mudança. Tudo self-service, mordomia zero. Nossa vida cabia numa carreta de caminhão de 6m x 2m.

Eu finalmente deixava Laredo, bem mais cedo que o plano original do casal de ficar por lá por pelo menos dois anos. Durante meses minha cabeça foi uma placa de trânsito apontando para Houston, aquela metrópole tão distante dos estereótipos texanos que havia me surpreendido nas duas únicas vezes em que a havia visitado. Mas agora, justo agora, obviamente agora que Laredo ficava para trás, era o momento das humanas contradições. Eu sentia a pontada doce-azeda da saudade. Saudades dos amigos, da mexicanidade, da vida bilíngue, do tempero de taco em cada esquina, da sua feiúra, do seu papel grandioso em minha vida. Laredo que foi meu tempo de vida limbo, das "energias de renovação", termo que tenho lido com frequência em e-mails de amigos. Só agora, à distância, é que me dou conta dos elementos contidos em seu nome. Nunca consegui sentir o LAR em LARedo, mas ela se fez inesquecível e marcante. Laredo que carrega três notas musicais em sua composição.

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Achei que fosse desmaiar ao me ver dirigindo em pleno engarrafamento colossal de sexta-feira na hora do rush do intrincado sistema de rodovias que cruzam a cidade. Ao passar em frente ao centro, com o carro preso no meio de uma highway de seis pistas, senti a cabeça ficar leve. Leve como quem vai desmaiar. Uma futurística downtown Houston se abria perante meus olhos: prédios gigantes, Robocops espelhados prontos para me devorarem, um céu com cores de dilúvio. Eu quase conseguia escutar o Lamento Sertanejo, de Dominguinhos, em versão hillbilly rock. Tive que encarnar meu alter-ego que tiro da manga em momentos de apavoramento gerenciáveis, como turbulências em avião ou grandes multidões. Já não estava mais acostumada àquela loucura metropolitana. A última vez que dirigi num trânsito louco foi no Rio de Janeiro há quase oito anos. Minha existência naquela cidade foi sempre marcada pelo transporte público. Em Laredo as distâncias eram curtas e o trânsito era "palpável". Em Houston eu temi jamais me acostumar.

Chegamos no apartamento escolhido no único final de semana que tivemos para procurar casa. Apesar de ter morado em apartamento nos últimos 12 anos, voltar a morar em casa foi facinho facinho. Mas a vida inicial em Houston implicaria em mudanças. Não se pode ter tudo. Então adeus privacidade, espaço, jardim e quintal. O prédio é simpático, mas parece um dormitório de universidade. Mas eu agora moro num loft de pé direito alto, chão de cimento batido, cozinha integrada ao resto da casa, janelão, parede da sala sem acabamento, canos e pipas de ventilação aparentes pelo teto. Um loft pequeno e charmoso, mas convenhamos, de mentirinha. Porque na verdade não é um loft loft, e sim um apartamento em estilo loft, habitado por médicos, estudantes, eu, meu marido e um exército de cachorros, todos sedentos por consumir a atmosfera loftiniana que nos faz sentir tão urbanos e modernos.

Sobre a bancada da cozinha havia uma caixa com tulipas coloridas que eu havia encomendado para o aniversário de W., que completava 39 anos naquele exato dia. Brindamos com vinho turco e kebabs num aconchegante restaurante de mesma nacionalidade encontrado por acaso a duas milhas de casa. Ao lado dele, um bistrôzinho francês. Do outro lado da rua, o estádio da Rice University. Eu já estava apaixonada por aquela Babilônia.

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Já passaram-se dois meses e neste intervalo tantas histórias. Ainda estou em estado de enamoramento com a cidade, mas prossigo sem entender sua alma. Houston continua sendo um mistério para mim. Há cidades que não se deixam descobrir com tanta facilidade. Outras, como o Rio de Janeiro ou mesmo Austin, aqui no Texas, são escancaradas. "Eu sou assim" e o "assim" é tão fácil de identificar. Houston é um caldeirão de culturas, idiomas, raças, etnias e temperos. Ainda não conheci nenhum Houstoniano e talvez por isto esta dificuldade em decifrar meus arredores. Tudo ainda é muito estrangeiro, literalmente. Houston exala uma certa frieza, mas há algo nela que me acolhe. É asfalto e é verde. Muita grama, árvores, flores, fontes e parques. É verdade também que ainda não parei para entrar a fundo em suas esquinas, nos seus recantos escondidos atrás das atrações turísticas. Não tenho sentido pressa. Mas gosto das descobertas feitas aos poucos: das esculturas escondidas no Hermann Park; do restaurante paquistanês para onde costumo fugir na hora do almoço e ser confundida com indiana ou paquistanesa; das 19 tartarugas tomando banho de sol no laguinho do campo de golfe do outro lado da rua onde moro; do taxista senegalês que já ficou nosso amigo; do café Bósnio simplérrimo e delicioso que lota ao meio-dia de sábado; do bar louge-chic do Hotel Sorella; da hospitalidade do meu primo e sua esposa que nos receberam tão bem desde sempre. Meu marido também descobriu uma prima que não via há mais de 20 anos. Bom ter família por perto. Bom ainda não conhecer tudo. Bom me sentir já tão à vontade dirigindo sozinha nas suas highways e avenidas de tráfego volumoso. Não há qualquer resquício de pânico.