terça-feira, 4 de maio de 2010

Imensidão


Precisava me perder. Precisava me entregar para horizontes distantes, desprender-me da verticalidade da vida (crescer, ambicionar, ter rumo, ter planos, ser alguém). Nem que fosse por apenas uma tarde de um domingo preguiçoso. Precisava de brisa de sal para lavar desilusões e curar suspiros suspeitos em esquinas escuras. Todos carregamos ao menos um par deles na garganta ou debaixo do couro grosso. Um grito de gaivotas me chamava. Começou pequeno, delicado e cresceu a ponto de rasgar meus tímpanos. Entrei no carro. Ah, a estrada. A estrada rumo ao mar, um mar tão perto de mim, um mar a apenas uma hora de mim e eu, querendo fincar os pés no cimento da cidade, ia me esquecendo da minha metade peixe.

A viagem fluiu com canções de andarilhos na voz de Elis. As curvas da estrada de Santos eram agora a reta de 60 milhas da trilha Houston-Galveston.
Esperava uma Galveston feia e cinza, ainda semi-destruída com a passagem do furacão Ike há um ano e meio. Ninguém nunca me falou nada belo a respeito das suas praias. Temia ver a infame mancha de óleo que se alastra pelas águas do Golfo do México. Como representante da raça humana, morri de vergonha perante a natureza. Então, ao me deparar com uma Galveston reluzindo baixo um calor quase tropical; uma Galveston de brisa refrescante e mar agitado abrigando uma coleção de ondas curtas porém frenéticas que procriavam espumas brancas; uma Galveston fênix totalmente reconstruída, sem resquícios de vendavais ou furacões e sem manchas de óleo pelo menos até onde a vista alcançava; ao me ver frente a frente a um horizonte de águas turvas que ensaiava tímidos tons de verde e azul, eu agradeci a todos os comentários denigrentes sobre aquela pequena cidade litorânea da costa texana. Nada melhor que se deliciar com a realidade vista a olhos nus após experimentar o mantra dos superlativos negativos advindos das experiências alheias. A minha primeira experiência em Galveston foi assim, de choque. Um choque bom o suficiente para acender meus receptores de sorrisos.

De cara eu não quis reparar nos detalhes. Quis olhar o todo, me perder no todo, enxergar a água e cada formação ondular até onde não se consegue mais distinguir o horizonte do céu. Quis ver de longe, observar do alto como um satélite-espião, mas eu não conseguia ser tão soviética e me entregava à minha humanidade comendo bolinhos de carangueijo e tomando um chardonnay do outro lado da rua. Sobre meu crânio reinavam as esculturas do camarão-monstro e do carangueijo-monstro de três metros. Como gostam de Disneylândias estes americanos. Eu, tomada por apetites, degustava e contemplava.

Nunca consegui meditar no sentido clássico de meditação, de fechar os olhos ou fazer ommmmm. Sempre tive medo. Medo de perder o controle. Medo de me deixar levar e nunca mais voltar. Eu que sempre quis me descontrolar e por vezes até quase cheguei a me permitir. Na maioria das vezes, porém, até mesmo os quase-descontroles foram calculados, salvo um punhado ou dois de passionalidade em situações extremas. Lembro de ter lido algo sobre "meditação contemplativa" e agora, olhando para trás, creio que aquele exercício de simplesmente observar as ondas e a praia se enquadra nesta categoria. De olhos abertos e observando a realidade que se debruçava pertante minha vista, minha pele, meus ouvidos, meus sentidos, não consegui pensar em nada a não ser no vaivém da espuma, no cheiro de maresia, na interação de homem, mulher e criança com água, pássaros e pedras. Minha mente estava focada somente naquele instante. Não havia nem antes nem depois, nem ápices de alegria ou de ira. Somente o agora e sua exatitude. Havia uma sensação de purificação naquela simplicidade. Não buscava respostas para nada, não vislumbrava mensagens em garrafas ou nenhuma forma de apoderamento divino. Cada inspirada de ar fresco e eu trazia um pouco daquela natureza para dentro de mim. Cada expirada, um pequeno ritual de exorcismo.

Caminhei. Passei a observar os detalhes. As conchinhas esmagadas na areia escura, o muro da orla com grafitis de peixes e baleias, a água quebrando nas pedras, o pescador tatuado arrumando a vara de pescar, o surfista parafinando a prancha, o casal de mãos dadas nas suas cadeirinhas de naylon. Tirei as sandálias, caminhei até o mar. A areia era dura e a água mais fria que o esperado naquele dia de sol forte e amarelo. Me arrependi de não ter levado o biquíni. Em outras épocas eu teria me jogado na água de roupa e tudo (para determinadas situações os anos adicionam um certo enfrescalhamento na tomada de decisões). O ritual de lava-pés não substituiu um banho completo de sal grosso, mas já ajudava a diluir o cimento que a cidade tem depositado na minha sola. Não deu para criar escamas, mas enquanto a semana se desenrola, sinto uma pontada de barbatanas começando a coçar na coluna lombar. É preciso voltar ao mar.