segunda-feira, 20 de maio de 2013

A sílfide de cafeína nos olhos

Se aparecesse por trás de uma cortina iluminada por incandescentes holofotes seria fácil chamá-la de sílfide. Sua sombra mostraria o contorno do corpo magrinho e delicado exaltando a mais romana feminilidade. Um par de pernas longas e perfeitamente contornadas, uma cinturinha de se abraçar com as duas mãos. Trajava um vestido dois palmos acima do joelho, lilás com flores brancas. Ou seria o contrário? Um vestido saído das páginas de um livro de moldes de boneca de papel. Andava com graça, vigor e auto-confiança do balcão de atendimento à mesa do pátio em encontro ao sol.

No curto intervalo em que apareceu naquele café na manhã de domingo tomou pelo menos duas xícaras cheias de java. E eu me enchi de interrogações. O que será que escutava por baixo dos brincos de camafeu? Que cores discernia por trás dos olhos marcados de delineador azul intenso borrado? O mundo que a olhava via o Tempo. O mundo que eu olhava via o Tempo. Sua pele era o Tempo, enrugada em cada centímetro possível de epiderme, salpicada de mochas manchas, algumas do tamanho de tâmaras, gordas manchas de tantas décadas, uma para ano vivido e mais umas dezenas para suas próximas reencarnações.  Não era possível decifrar se o penteado despenteado e obsecado de laquê era indicação de texicanidade, de excentricidade ou de loucura. Seu cabelo era do mais perfeito branco, aquele branco que só o Tempo sabe colorir. Eu, do alto dos meus castanhos cabelos tingidos naquela mesma manhã, tentava usar um pouco da sabedoria que o Tempo me concedeu: observar mais e julgar menos. Fracassei: mas como assim aquele vestidinho lilás? Tenho certeza que ela escutou meu inadequado pensamento. De xícara na mão seu olhar cruzou o pátio e foi parar no fundo da minha retina. Um sorriso dela e a resposta veio fácil. E como não aquele vestidinho branco de flores lilás? O Tempo chegou, mas com olhos de cafeína ela encapsulou seu jovem espírito e deu uma rasteira no Tempo. E em qualquer sinal do meu estúpido pré-julgamento.


domingo, 19 de maio de 2013

Americanizando: a caminho da cidadania




-Quem é o chefe do supremo tribunal de justiça dos Estados Unidos da América? - perguntou a oficial de imigração, obviamente latina de nascimento por conta do sotaque, do sobrenome e das características físicas.
-John Roberts - respondi.
- Quantos representantes tem a Câmara dos Deputados?
- 435.
- Em que mês se vota para presidente nos Estados Unidos?
- Novembro.
- Quem é o pai da nossa nação?
- George Washington.

Eu precisei estudar 100 questões sobre conhecimento cívico, histórico e geográfico dos Estados Unidos e acertar seis de dez perguntas na minha entrevista final para virar cidadã americana. Também era necessário escrever uma resposta para mostrar meu entendimento básico do idioma inglês. Precisei jurar, sobre pena de ser julgada por crime de perjúrio, que nunca fiz parte de uma organização nazista, que nunca pertenci ao partido comunista, que não sou terrorista, que juro lealdade a este país e que estou disposta a portar armas em nome dos Estados Unidos da América. Foram quase quatro anos de muita papelada preenchida, duas entrevistas, três visitas a escritórios diversos para tirar fotografias e impressões digitais e cerca de US$2.000,00 em tarifas burocráticas, mas em um mês eu participarei da última etapa do processo de cidadania, o  juramento à bandeira.

Saí da entrevista com emoções à flor da pele, tentando digerir o significado de tudo aquilo. Abracei o meu marido, figura chave em todo este processo, um americano que quer se tornar brasileiro, e chorei. Um choro profundo, lá do fundo da alma. Alegria, alívio, apreensão, tudo misturado. Minha jornada neste país, iniciada há 20 anos como estudante de intercâmbio cultural aos 16 anos, prestes a culminar num marco que eu, not even in my wildest dreams, jamais poderia imaginar.  Correção. Minha jornada começou bem antes, aos 11 anos de idade, durante as aulas de inglês depois do colégio, quatro dias por semana, uma hora e meia por dia. O ET English TOEFL foi uma excelente escola de inglês fundada pelo professor Henry Sauerbraun, o Henrique, americano de Illinois que se mudou para Petrolina-PE nos anos 70, se casou com uma brasileira, teve filhos brasileiros e com seu forte sotaque português ensinou gerações de petrolinenses a irem muito além do the book is on the table. Hoje no céu onde mora tenho certeza que Henrique ensina às almas que voltarão ao mundo o prazer de explorar outras culturas. No seu caso, ele ensinava com orgulho e gosto a língua e a cultura da sua terra natal. Num sertão pré-Internet fascinado com o American way of life, foi o professor Henrique quem botou algumas toneladas de lenha na minha fogueira de exploradora da vida além das fronteiras da margem média do Rio São Francisco.

Eu não sabia que os Estados Unidos não reconhecem a dupla cidadania. Tomei conhecimento deste fato somente durante a minha entrevista com a oficial de imigração. Uma vez cidadã americana, perante a justiça americana eu oficialmente deixarei de ser brasileira. Por outro lado, o Brasil reconhece a dupla cidadania, então poderei carregar os dois passaportes. O meu marido foi quem mais insistiu para que eu me tornasse cidadã americana. Como defensor público federal, o advogado que o governo providencia para acusados de crimes federais que não podem pagar um advogado privado, ele lida diariamente com imigrantes e já viu incontáveis casos de famílias serem divididas por conta de um dia o trabalhador, mesmo com seu greencard, ter sido deportado, acusado de algum tipo de crime como dirigir embriagado.

Entre as minhas idas e vindas a este país - intercâmbio, faculdade, casamento - lá se vão 10 anos. Virar cidadã nunca foi o que me moveu a empreender esta jornada, mas sim uma consequência dela. Até porque, com minhas ciganices, eu sempre me imaginei morando em várias partes do mundo em diferentes momentos da minha vida. A verdade é que vontade por si só ainda não me levou a explorar este sonho por completo. Em toda a minha vida eu só morei em dois países. Os Estados Unidos têm um papel crucial na minha formação, naquilo que hoje sou e naquilo que um dia vou me tornar. Os Estados Unidos me trouxeram amigos leais e generosos, uma vida material confortável, um contínuo senso de motivação e um grande amor. Mesmo tendo que passar por todo este processo de entrevistas e papeladas, suas portas estiveram não apenas abertas, mas escancaradas para mim. Por tudo isto, I'm proud to become an American e também extremamente grata. Da mesma forma, apesar de voltar a Petrolina já não ser mais uma opção, ser brasileira, nordestina e sertaneja são fatores determinantes da minha personalidade e uma grande fonte de orgulho.

Como quase oficialmente americana, ainda brasileira e eternamente cidadã do mundo, juro lealdade ao eterno desejo de explorar, de expandir os horizontes e de entender que a Verdade depende em grande parte do seu interlocutor.  Num mundo pós-Internet onde as distâncias culturais e geográficas são cada vez mais ténues, é necessário ter compaixão e empatia para não se deixar levar pelo pré-julgamento do que é certo e errado. Vale lembrar que para abrir os horizontes não é preciso cruzar oceanos. Um livro com idéias fora da sua zona de conforto, uma visita a um templo de uma religião que você não pratica e o degustar de um prato com um ingrediente novo são um excelente começo para o processo de desbravamento.






domingo, 12 de maio de 2013

Identidade cultural: o eu e o espelho

Quinta-feira, exausta após um intenso dia de trabalho, eu precisava espairecer ainda que em doses homeopáticas. Meu marido me liga dizendo que estava a caminho de um happy hour no Cuchara onde encontraria um grupo envolvido com a comunidade latina de Houston. Gente nova, tequila e triple sec num dos meus restaurantes favoritos ressoaram como o substituto perfeito para a aula de ioga. O bom da vida é a surpresa: o que parecia ser um encontro corriqueiro em mesa de bar manifestou-se como aula viva sobre identidade cultural.

A mesa já estava posta com chicharones, guacamole e salsas. Algumas pessoas começavam a segunda rodada de margaritas. Quase todos integrantes do Latino Giving Way,  uma organização filantrópica não-governamental que arrecada fundos para distribuir em projetos comunitários variados de assistência à enorme comunidade latina de Houston. Havia cinco advogados, uma secretária, uma enfermeira e um funcionário da TSA, a agência responsável por administrar a segurança em aeroportos. Era a primeira vez em que eu conhecia um agente da TSA fora do contexto detector de metais e surpreendentemente aquilo me pareceu extraordinário.

A conversa era solta, descontraída e o riso rolava fácil. Nestas rodas onde nem todos se conhecem a pergunta "vocé é de onde?" aflora naturalmente. Havia alguns mexicanos, mas a maior parte da turma era composta por americanos de ascendência mexicana. Quase nenhum deles falava espanhol. O fato de eu ser brasileira gerava tópicos para muitas perguntas. E na minha segunda margarita e sedenta de curiosidade perguntei "por que latino e não hispânico?" A mesa silenciou-se. Nata, uma jovem defensora pública federal que conheço há cerca de um ano soltou um "oh, isto é profundo." A moça que sentava ao seu lado, advogada de imigração, morena, cabelo joãozinho, tomou a liderança da resposta. Segundo suas palavras, hispânico inclui pessoas da Espanha, mas não dá para comparar a cultura e realidade latinas com os espanhóis europeus. "You know, eu nasci nos Estados Unidos, não falo espanhol e se eu tiver que me auto-caracterizar eu diria que sou chicana pois carrego uma bagagem cultural do México por conta da minha família. Por mais americana que eu seja, sempre fui rotulada como mexicana pelo simples fato de não ser branca." Para quem não conhece, "chicano," explicado aqui de forma simplista, é o termo usado para identificar o americano filho de mexicanos. Eu já li muita coisa ligada a identidade cultural, mas ouvir da fonte, sem academicismos, é bem mais prazeroso e autêntico. Uma a uma as pessoas começaram a dar seus relatos pessoais sobre o tema e o denominador comum era a divergência entre o que um sente e o que a sociedade rotula. É algo assim, como o espelho: um dia você se olha e vê a primeira ruga no canto dos olhos, mas dentro da alma você ainda é aquela jovem sonhadora de vinte anos atrás. 

Veja John, um advogado que chegou à nossa mesa quando a tequila já borbulhava feliz na minha corrente sangüínia e eu adotava o nome de guerra Consuela. John é branco a ponto de ser quase cor-de-rosa, tem olhos azuis- acinzentados e cabelo loiro-grisalho como seus cílios. Pergunte para John de onde ele é e a resposta chega com inglês perfeito e sem um pingo de sotaque: "nasci aqui mas fui criado no México do jardim de infância ao colegial. Sou mexicano." Ouviu-se um grande oh my God. Todos, sem exceção, achavam que John era americano. Nos Estados Unidos, com sua cara nórdica e inglês perfeito, John foi aceito imediatamente como nativo do Texas. 

Eu lembrei do homem que me vendeu cachorro-quente num estádio de futebol ano passado durante a partida Brasil x México (na qual o Brasil perdeu vergonhosamente). Perguntei em espanhol se ele estava torcendo pelo México. Ele fez questão de enfatizar que era de uma quinta geração de texanos e que seu conhecimento de espanhol é limitado, mas para o resto do mundo ele sempre foi mexicano e mexicano sempre será. In English, ele me disse que estava torcendo pelo Brazil.

Mais recentemente, numa conferência de trabalho na Califórnia, conheci um grupo da tribo Navajo. Quase todos brancos. Uma moça de pele branquinha e belos olhos azuis me disse que cresceu sabendo que é Navajo, estudou em colégio indígena a vida inteira mas sempre foi tratada como forasteira pelos colegas da escola. Meu loiro marido, tatataraneto de Cherokee, tem sangue Cherokee na mesma proporção Navajo dela, mas para ele identificar-se como índio é muita forçação de barra. 

Raça não é sinônimo de identidade cultural. Pode até ser um aspecto da identidade, mas não sua totalidade. O mesmo vale para o identificação sexual: um travesti pode ter nascido com pinto, mas sua alma é uma vulva aflorada. Talvez por algum instinto de sobrevivência milenar tenhamos a inclinação natural de agrupar as pessoas em silos estereotipados. Saber que cobra é cobra e que vai picar se cutucada é importante para manter-se vivo dentro do mato. A cobra pode até seduzir dizendo ser um carneirinho, mas o instinto ficará ligado esperando a hora do bote. 

Tome por exemplo o meu alter-ego Consuela. A mexicana sentada ao meu lado apenas ouviu a parte que eu me apresentava como Consuela. Quando descobriu a brincadeira ela sorriu com alívio: "Fiquei sem entender nada, pois não apenas você é brasileira, como também é muito sofisticada para se chamar Consuela." Consuela, ao final de contas, soa demasiadamente colarinho azul dos confins da Sierra Madre, nada a ver com meu moderno cabelo curto e minha echarpe de seda.  Na minha última viagem a Petrolina, minha cidade natal no sertão pernambucano, o dono de uma loja de artigos de couro perguntou se eu era "sulista." Meu sotaque pernambucano já mais suavizado, meu cabelo e a maneira de me vestir dissonavam dos seus clientes cotidianos. O senhorzinho ficou impressionado e até incrédulo quando soltei que eu era minhoca da terra.

Passei mais da metade da minha vida adulta nos Estados Unidos e em poucos meses devo obter a cidadania americana. Isto me tornará menos brasileira? Não. Identidade cultural é aquilo que reflete por dentro e não apenas por fora. Um tanto enorme de mim já se americanizou também: gosto do meu espaço e da minha individualidade, e quando faço perguntas quero respostas diretas e sem rodeios. Ultimamente tenho feito uns exercícios para identificar qual a minha missão na vida. Como não gosto de me limitar, acredito que eu tenha várias. Uma delas é o de quebrar estereótipos. Se o espelho e minha voz automaticamente entregam uma parte do que eu sou, que o resto de mim mostre ao mundo a riqueza de ser uma vira-latas com pedigree de cidadã do mundo. Enquanto isto saio por aí, tecendo um patchwork com as cores, ritmos e sabores que cato pelo caminho, atenta para não cair na tentação de rotular aquilo que desconheço. 









quarta-feira, 8 de maio de 2013

Das coisas iniciadas e não concluídas

Tenho uma lista enorme de projetos iniciados e nunca concluídos. Coisas pela metade, pela terça parte.    Coisas escancaradamente abertas como aqueles sobrados nas encostas dos morros recifenses, cariocas e jamaicanos:  têm tijolo, cimento e parede mas falta acabamento. Minha vida tem sido assim, feita de puxadinhos sem reboco. A eterna necessidade de explorar também me causa falta de foco. E uma puta ansiedade.

Faz quase quatro anos que me mudei para o Texas e desde então explorei aulas de violão, tango, meditação em templo budista chinês e metalurgia para a confecção de anéis. Também esbocei pelo menos dois roteiros de filmes e outras duas idéias de negócios. Sem contar no francês iniciado no Brasil, o curso de vinho pela Internet ou as 238 vezes em que comecei uma dieta e parei. Ou este blog, salpicado com hiatos de mais de um ano. Iniciei cada um destes projetos com uma energia fenomenal, mas não tardava a esquecê-los com a mesma frenética velocidade. 

Em Laredo cheguei a tocar uma música inteira no violão, mas agora, três anos mais tarde, não me pergunte onde fica o dó porque não vou lembrar. Hoje o violão acústico mofa no armário, sofrendo de esquecimento. Isto sim é de dar dó.

Ao me mudar para Houston descobri que há uma enorme comunidade tangueira. É possível dançar tango todos os dias da semana, nos mais diversos ambientes, como estúdios, restaurantes e casas de chá. Aprendi com o tango que não dá para se controlar tudo na vida: para ser a dama no tango é necessário confiar no parceiro, se deixar levar, deixar-se dominar. O tango foi praticamente um tapa na minha cara. Até hoje vou ao delírio com acordes de Piazzolla e com a beleza do baile, mas ainda não me conformo com a minha total incapacidade de tanguear. Foram 10 meses e dois pés esquerdos. Logo eu, a brasileira que sempre dançou. Como não eu, a moça que raramente se deixou descontrolar por completo. 

A meditação foi outra revelação. Eu achava que meditar seria entrar num estado de êxtase, tipo, sei lá, um orgasmo sem clitóris. OK, péssima analogia, mas enfim, imaginei que minha alma fosse ser elevada a uma outra dimensão, uma viagem de ácido sem efeitos colaterais. Talvez esta forma de meditar até exista, mas confesso que ainda nem "googlei" esta possibilidade. Durante três meses eu ia ao templo do outro lado da cidade tentar esvaziar a mente de pensamentos errantes. A princípio parecia uma tarefa humanamente impossível, completamente contrária ao estilo de vida ditado pela nossa moderna e enlouquecida sociedade multi-disciplinar. Aos poucos fui aprendendo a dominar meu próprio cérebro. Sentia calma e um senso de controle. Um tipo de controle diferente daquele que eu não conseguia me desapegar nas aulas de tango. Não pratiquei meditação o suficiente para virar expert em libertar a minha mente e me concentrar apenas no aqui e agora, mas os ensinamentos aprendidos com aqueles jovens monges chineses ainda ressoam: "nada é permanente nesta vida, tudo passa. Apenas a mente fica." 

Fiz dois semestres de aulas de metalurgia uma vez por semana. Eu acabara de voltar de uma semana na Jamaica. Vi uma rastafari vendendo seus colarzinhos na praia e senti uma enorme vontade de produzir algo também. Eu que nunca havia trançado nem pulseirinha de linha pulei direto para a aula de anéis em cobre. Manejei ferramentas que pareciam tiradas de um livro medieval de torturas. Descobri que cobre é um metal macio. Aprendi a fazer pátina e a soldar pedacinhos de metal tão minúsculos que seria possível confundi-los com grãos de areia. Atenção ao detalhe era crucial: ou tinha cuidado ou um naco do meu dedo ia embora no processo manual de serrar a prata. Metalurgia foi uma forma de meditação ativa. Foi uma das raras atividades onde me permiti viver o instante, estar presente, esvaziar a cabeça dos pensamentos aleatórios. Perdi o meu primeiro projeto, um chaveiro em formato abstrato, nos arredores de uma churrascaria. De uma carne que nem era tão boa assim. Liguei, voltei para procurar, mas nada. Fiquei arrasada. O chaveirinho de linhas minimalistas significava que eu era capaz de produzir algo palpável. Dei o terceiro e último projeto, um pingente de prata, para minha mãe no último Natal. Mantenho o segundo, um anel de cobre, sempre por perto. Foram pelo menos 12 horas para produzi-lo. Apesar de raramente usá-lo, olho para ele todas as manhãs e me lembro que quando me empenho sou capaz de concluir algo e produzir coisas simples e belas, ainda que em estado artesanal. Há beleza e saciedade num ângulo de 360 graus. 

Embora eu tenha largado tudo isto no meio do caminho, estes projetos traduziram-se em pequenas grandes lições. Talvez este tenha sido o objetivo primordial deles na minha vida. Ainda tenho vontade de tanguear e destinar pelo menos 15 minutos do meu dia a meditação. Ainda adoro metais e bijouterias e de vez em quando bate uma vontade louca de começar um negócio nesta área. Uma coisa é certa: me auto-denominar uma exploradora da vida minimiza qualquer sinal da minha falta de compromisso. É ao mesmo tempo uma justificativa plausível e uma excelente desculpa. Posso olhar o recorrente padrão de comportamento de duas formas: ou tenho construído uma mansão sem reboco ou tenho embarcado numa viagem intergalática ao Centro da Liberdade. Ainda não tenho respostas. Ser pilota da própria vida é uma honra, mas talvez seja hora de parar para colocar os pingos nos is. Ou seria isto muito limitador?







quarta-feira, 1 de maio de 2013

Uma hora de ócio no dia mundial do trabalho (e observações corriqueiras do calmo centro Houstoniano)

No dia mundial do trabalho eu trabalhei. O mundo dentro do meu escritório trabalhava. O mundo quase  todo fora dele, no centro de Houston, também. O centro de Houston é um território particular. Apesar de esta ser a quarta maior cidade americana, o downtown não tem a personalidade agitada de um centro nervoso como é de se esperar nas grandes metrópolis. Pelo contrário, é calmo, organizado e frequentemente tão vazio a ponto de por vezes parecer fantasmagórico. Existem dois mundos no centro de Houston: a superfície e o subsolo. Não é sentido figurado: de fato existe uma extensa rede de túneis por baixo da terra, 6.4 km para ser exata. É muito comum encontrar forasteiros perguntando por que é que o centro parece tão morto na hora do almoço. É porque a maior parte da vida está seis metros abaixo da terra, de olhos bem abertos, aproveitando o ar-condicionado enquanto caminha por lojas, come em restaurantes, faz unha, paga conta em banco, vai ao barbeiro e leva o sapato para consertar. Aqui faz um calor dos infernos por pelo menos quatro meses do ano. E como estes americanos são muito engenhosos, resolveram construir um shopping center subterrâneo que cobre um perímetro de 45 quarteirões.

Eu, claustrofóbica que sou, gosto mais da vida do lado de cima onde é possível ver o sol. Um dos meu lugares favoritos de Houston é o Phoenicia, um verdadeiro tesouro para mentes e estômagos globais. Lá pode-se encontrar bolinho de bacalhau fresco, queijos do Chipre, vinho da Geórgia (aquela perto da Rússia) e pão sírio feito na hora. Além de tudo ser delicioso e do lugar ter um astral descontraído, os preços são bem acessíveis. Tenho gastado em média US$ 5 por almoço, enquanto que em outros lugares qualquer saladinha ou pad thai sai de US$9 - $13. Parece até piada, considerando que há quatro anos no centro do Rio de Janeiro eu pagava mais que isto em reais.

Muitas vezes almoço acompanhada dos colegas de trabalho, mas com frequência fujo com minha sombra para recarregar as baterias. Hoje fui buscar refúgio no Discovery Green, um parque a apenas um quarteirão de onde trabalho. Grama, brinquedos, restaurantes, laguinho e árvores. Nada extraordinário, mas numa cidade sem grande atrativos paisagísticos qualquer área verde está valendo. Outro dia vi uma mocinha de hijab (o véu muçulmano) entrar no Phoenicia e, assim como eu, dirigir-se ao Discovery Green. Ela sentou-se embaixo de uma árvore e ali ficou, degustando seu almoço e energizando-se em horário comercial. Assim como ela eu hoje também não queria falar com ninguém. Queria apenas observar a vida.  Americanos adoram puxar conversa com estranhos, característica que normalmente adoro, mas hoje meu corpo queria poupar palavras e ver detalhes em excesso. Minha superfície vestia vermelho, mas meu subsolo usava beige. E quando parei vi jovens mães brincando com seus bebês. Algumas faziam competição de barquinhos miniatura movidos a controle remoto. Do outro canto do parque o Centro de Convenções exibia placa da exposição no NRA (National Rifle Association). Uma bela asiática de shortinho micro e cabelão na cintura passeava com seu também micro cachorro fashion de pêlo cinza. No seu requebrado a caminho do outro lado da rua. Uma rua chamada desejo. Dois senhores de cabelo grisalho, com idade para serem seus avôs, acompanhavam cada passo do seu requebrar. Quando ela já quase desaparecia no horizonte eles se entreolharam com suspiro na retina como quem diz"ai no meu tempo." Dois homens de meia-idade negros e altos, vestindo bermudas e chapéu fedora, conversavam em tom animado. Uma moça fantasiada de executiva ria nervosamente tentando tirar o salto alto que ficou enfiado entre as madeiras do deck do lago. Um homem também fantasiado de executivo devorava um cachorro-quente. E à minha esquerda criancinhas de fralda se esbaldavam nas fontes que escalavam do chão ao céu, desaparecendo e re-aparencendo lá na frente para seu deleite. E para o meu. Uma correria de meninos, tanta água, tanto riso que mal reparei no céu cinzento, tímido de sol e de chuva. Eu queria era pular naquela fonte, correr pra cima e pra baixo, ser a louca do parque, rolar na grama, jogar areia pra cima e BAM, uma hora já havia se passado. Uma hora de almoço em dia útil americano é quase heresia. Em dias inúteis também. Almocei fast-food mas me re-energizei em slow motion. Porque trabalhar é fundamental, mas sentir o mundo é vital.