terça-feira, 21 de outubro de 2014

Buscando tutano nos embalos de sábado à noite

Sábado à noite de alma irrequieta. De uma hora para outra esta cidade tornou-se um pêndulo, movimentos que não variam de um lado para outro, uma constância enfadonha de bares e gentes e seres da noite e gargalhadas e taças de vinhos e três segundos de ilusão num balcão de bar.  No espaço deste ano sair na noite transitou de uma opção da minha nova liberdade para uma espécie de ritual proletário de final de expediente, algo que clama por batom vermelho e salto alto, mas também por substância, mas olha só eu procurando tutano nos lugares errados. Em balcão de bar encontra-se copo e não medula. Em pista de dança encontra-se muito desejo e quase nada de massa encefálica. Mas, vez por outra, encontra-se ternura na face do medo.

Naquele sábado eu usava calça jeans e um par de texanas botas vermelhas.  Não era dia de caça. Era dia de rever um antigo casal de amigos num microscópico bar do outro lado da cidade, o clássico houstoniano Shakespeare Pub, reduto de amantes de blues, quase todos homens e mulheres brancos de meia-idade. O lugar é escuro, as mesas de sinuca ao fundo estão quase sempre vazias e as doses de bourbon on the rocks são generosamente bem servidas por simpáticas garçonetes que mal completaram 21 anos de idade. O clima é família, quase uma aberração no meio da cena bar.  E a música – ah, a música! Doses colossais de pura beleza, guitarras elétricas que rasgam o espaço tilitando ondas sonoras de hipnotizar tímpanos, retina e coração.

Naquela noite o cantor parecia uma reencarnação de um Robert Plant de 30 e poucos anos. Seus longos cachos louros desciam abaixo dos ombros. Sua voz era viril e intensa como as botas que usava: texanas, couro de jacaré, bico pontudo de prata.  Sua guitarra tocava um som estilo Austin, Texas, um blues salpicado com rock e country, mas assim, um tempero bem de leve, quase como uma pitada de fleur de sel só para dar gosto.  Era impossível tirar os olhos e ouvidos do mini-palco. Sua presença enchia todo o ambiente. Sua voz derretia o gelo do meu Maker’s Mark. Até o momento em que os holofotes voltaram-se para o meio do salão.

Usando uma blusa do Texans, o time profissional de futebol americano de Houston, shorts curtos, tênis e meias brancas até o meio das canelas, um senhor de cabelos branquinhos e cara enrugada roubou a cena. Reconheço que tempos atrás eu teria sentido aquela leve vergonha por sua pessoa, pela expressividade da sua pessoa, por sua falta de estilo – ou melhor, pelo seu tipo de estilo. Shame on me e na humanidade por chamar de ridículo aquilo que não nos cai bem! Mas nestes dias em que meu coração aprendeu a sentir mais e meu senso crítico a  clamar menos, eu vi naquele salão vazio um homem que não estava nem aí para ninguém, feliz com sua dança desajeitada, seus dedinhos apontando para o teto e suas compridas meias. E alguma coisa naquela autenticidade mexeu comigo. Mais um gole e fui ao seu encontro. Foram uns dois minutos de blues e quadris em movimento dançando frente a frente antes da música acabar. Voltei para minha mesa. Meus amigos romenos sorriam para mim com ares de aprovação. O senhorzinho das meias brancas sentou-se conosco. Seus olhos eram claros, mas naquele lugar escuro era difícil dizer se azuis, verdes ou cinzas. Eram olhos de quem viveu muitos anos, muito além da minha vida. Com uma voz rouca, me disse “thank you, really.” E com dificuldades na fala, proferiu sua sentença: “Acabei se ser diagnosticado com câncer de garganta.” Explicou que aquele era o último dia em que poderia beber antes de começar a quimioterapia. Ele tinha 71 anos, mas parecia 10 anos mais velho. Com uma garrafa de cerveja na mão ele me olhou mais uma vez e me agradeceu por ter feito daquela noite algo muito especial para ele, ainda que por poucos minutos de dança num salão desabitado.


Eu não posso dizer que conheço a cara da morte, mas eu vi a cara de quem quis fazer um brinde à vida quando ela parece correr do nosso controle.  Naquela noite, depois daquele encontro, eu dancei sozinha no salão quando ninguém dançava, nem mesmo o senhor de meias brancas com sua última garrafa de cerveja. Eu cantarolei as melodias das canções que eu não sabia. Eu saí dali para botar o papo em dia com uma amiga que não via há muito tempo. Eu falei o que me deu vontade, sem filtros, e sei que não necessariamente agradei, mas falei o que eu precisava dizer. Naquela noite eu fui dormir pensando que, de fato, o amanhã nada mais é do que uma grande ilusão e que é possível, ainda que por um apanhado de minutos, encontrar beleza em face à tragédia. E, inclusive, tutano em salão de bar.

domingo, 19 de outubro de 2014

A vida na outra margem do rio

De braços abertos no rio Sava em Belgrado, Sérvia, agosto de 2014

Eu atravessei para a outra margem do rio e o mundo que encontrei é belo e bruto. As dores ficaram para trás e as cicatrizes já sumiram com pomadas de humildade, compaixão própria, amizades sinceras e chá de camomila antes de dormir. Se precisar de referências, leia o meu post anterior.  Meu braços hojes são fortes, talhados em introspecção e ioga. Porque é preciso ter braços fortes para se construir o futuro.  E um músculo cardíaco que bate em uníssono com a vontade de explorar.

O desafio inevitável é navegar o presente e erguer as pontes para o amanhã. O meu presente hoje é de mulher profissional trabalhando no 47o andar de uma torre fincada no centro financeiro de uma grande metrópole norte-americana. De mulher solteira re-descobrindo de que são feitas as conexões entre homem e mulher e, neste exercício, rindo com as aventuras que aparecem no caminho ou choramingando os desencontros e os eventuais encontros com ogros no meio da estrada.  Vida de filha que daqui pra frente quer passar mais tempo perto dos pais, seja fisicamente ou em espírito.  Vida de explorar novas amizades e de reavaliar aquelas que já não mais se sustentam porque as diferenças de valores passaram a gritar mais alto que as semelhanças. Vida de quem aprendeu a dizer não a maior parte do tempo. Mas ainda há muitos nãos a dizer. E, como não podia deixar de ser, uma sacola cheia de sins.  


O meu presente hoje é de tentar achar o meu lugar no mundo, tirar o olho do umbigo e pensar no legado que deixarei para a humanidade. De que valem os títulos e as torres se a energia não está focada para o bem comum, para o melhoramento da nossa espécie humana, para a quebra das correntes, para o esfalecimento do medo? Neste último ano vi que um dos dons que possuo é o de aconselhar mulheres profissionais  a viverem plenas vidas profissionais, sem medo de negociarem salários, de sentarem-se `a mesa junto aos tomadores de decisões, de pedirem as merecidas promoções. Estou moldando projetos em cima disto, nada muito concreto, apenas emaranhados de pensamentos e vontade. Vamos ver para onde me levará a próxima aventura. Espero que em minha vida ainda haja muitos rios por nadar, de preferência em águas mais calmas e transparentes.